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Do SNI a ABIN, o Ministério do Silêncio

ABIN_400x400Leia aqui artigo publicado pelo Sul21 sobre meu livro Ministério do Silêncio: a história do serviço secreto de Washington Luís a Lula (1927-2005).

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Mais uma batalha judicial ganha

justica1Quer ser autor de não ficção no Brasil? Comece contratando um bom advogado. E não se esqueça de separar uma parte de suas economias para longas e dispendiosas batalhas judiciais.

Ontem, recebi a boa notícia de que venci mais uma das muitas disputas judiciais para as quais fui arrastado nos últimos anos pelo fato de exercer o chamado – detesto esse nome, mas vá lá – “jornalismo investigativo”. Desta vez, o questionamento recaia sobre meu livro Ministério do Silêncio – A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula (1927-2005).

Na sentença, a juíza Ana Luiza Morato, da 7ª Vara Cível de Brasília, entendeu que o livro “exerceu seu dever de levar informação de interesse público à sociedade”.

O processo ficou oito anos na Justiça.

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Boa Ventura! agora em ebook

Boa Ventura! é oferecido em duas versões de capa

Enfim, trago uma notícia muito cobrada pelos leitores: meu livro Boa Ventura! já está disponível no formato ebook.

A versão digital de Boa Ventura! está sendo oferecida no formato ePub, o mais aceito nos variados aparelhos em que se pode ler livros digitais, dos eReaders (Nook, Sony Reader, Alpha e outros) aos Smartphones, do iPad ao iPhone, passando ainda pelos PCs.

Além de Boa Ventura!, outros dois livros meus já estão disponíveis em ebook: O Operador e Olho por Olho.

As versões e-book de Boa Ventura!, O Operador e Olho por Olho podem ser baixadas, entre outras, nas livrarias virtuais Cultura, Submarino/TheCopia e Iba.

A Editora Record trabalha para oferecer em breve outros dois livros meus na versão digital: Ministério do Silêncio e Morcegos Negros.

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[ARQUIVO DE REPÓRTER] Anatomia de uma reportagem

No post que abriu a série ARQUIVO DE REPÓRTER, reproduzi a reportagem O livro secreto do Exército, a primeira de um conjunto de matérias publicadas nos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas que me deu o Prêmio Esso de Reportagem de 2007. Hoje publico, uma espécie de making off da investigação que me levou ao livro secreto: a reportagem O livro das sombras, publicada na revista Rolling Stone em julho de 2007.
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O livro das sombras
Lucas Figueiredo, para a Rolling Stone (julho/2007)

O nome dele não vem ao caso. O importante é contar o que ele fez. E, sobretudo, o que aconteceu depois. Estávamos eu e ele em sua casa, diante da estante de livros. Ele me mostrava seu acervo pessoal, composto basicamente de obras com temas militares: Guerra do Paraguai, inteligência, doutrina, depoimentos sobre o regime militar, Guerrilha do Araguaia etc. Ele sabia que eu gostava do assunto. Já eu desconfiava que, além de livros, ele tinha também informações. Não poderia imaginar, contudo, que ele guardava um tesouro em sua casa, e que esse tesouro era justamente um livro.

Eu já estava com uma pilha de livros nas mãos quando ele disse: “Ah, este aqui você vai gostar”, alcançando em seguida, no alto da estante, dois grossos volumes de capa preta. Antes de entregá-los a mim, alertou em tom solene: “Aqui está a verdade!”. Li o título da obra – O Livro Negro do Terrorismo no Brasil, tomos I e II – e fiz um grande esforço para não demonstrar a surpresa que experimentava naquele momento. Minha busca havia terminado! Depois de anos e anos tentando ter acesso a um dos mais bem guardados documentos secretos das Forças Armadas, ele estava ali, nas minhas mãos. Eu era o primeiro jornalista a segurar uma das 15 cópias existentes do livro secreto do Exército Brasileiro, um megadocumento inédito, de 966 páginas, escrito 19 anos atrás por oficiais do serviço secreto da força terrestre, com a versão da linha-dura sobre os Anos de Chumbo. Baseado em documentos confidenciais e no relato de militares e policiais que atuaram na repressão, o livro era uma das peças mais importantes dos chamados arquivos secretos das Forças Armadas. Minha vontade era uivar, dar socos no ar, subir pelas paredes, ajoelhar e, por fim, gritar: “Yeeeeessssss!”. Mas apenas comentei: “Parece interessante”.

A primeira vez que ouvira falar no livro secreto do Exército foi em 1998, quando iniciei as pesquisas do meu livro Ministério do Silêncio – A História do Serviço Secreto Brasileiro de Washington Luís a Lula (1927-2005). Uma de minhas fontes, um ex-torturador que trabalhara na comunidade de informações durante o regime militar (1964-85), me contou sobre o livro. Era homem bem informado, que tinha acesso privilegiado a documentos e segredos militares. Apesar de nunca ter visto a obra, ele sabia um bom pedaço de sua história.

Segundo seu relato, a odisséia do livro secreto tivera início em 1985, logo nos primeiros meses do pós-ditadura. Aproveitando o clima de liberdade, depois de 21 anos de escuridão, a Arquidiocese de São Paulo lançara o livro Brasil: Nunca Mais, com relatos de tortura e morte de presos políticos nos porões da repressão. Com detalhes aterrorizantes – como as aulas de tortura em que presos eram usados como cobaias, e os centros clandestinos das Forças Armadas, onde desafetos do regime eram assassinados com injeção para cavalo – a obra-denúncia causou espanto em boa parte da sociedade brasileira e no exterior. De quebra, despertou a ira nos quartéis.

O então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, foi um dos que não gostaram. Para não deixar o Brasil: Nunca Mais sem resposta, o general ordenou ao Centro de Informações do Exército (CIE), o serviço secreto da força terrestre, um dos braços mais mortíferos da repressão, que preparasse um livro contando a versão dos militares para a luta armada promovida por organizações de esquerda entre 1967 e 1974. A idéia era contar passagens pouco edificantes da vida daqueles que combateram a ditadura, sobretudo dos que haviam pegado em armas para tentar derrubar o regime. Depois de derrotar a esquerda nas armas, as Forças Armadas entravam novamente em guerra, desta vez combatendo com a informação.

No CIE, o projeto recebeu um código secreto: Orvil (a palavra livro ao contrário). Os trabalhos tiveram início em 1986, sob a coordenação do então coronel Agnaldo Del Nero Augusto, chefe da Seção de Informações do CIE. Durante quase três anos, no mais absoluto sigilo, cerca de 30 oficiais trabalharam no projeto. Para tanto, tiveram acesso aos arquivos (até hoje inéditos) do serviço secreto do Exército, que guarda documentos produzidos pelo órgão e por seus parceiros na ditadura, como o Serviço Nacional de Informações (SNI), o Cenimar (serviço secreto da Marinha), o Cisa (serviço secreto da Aeronáutica), o DOI-Codi (aparelho da repressão), a Polícia Federal e os Dops (Departamentos Estaduais de Ordem Política e Social). Os integrantes do Projeto Orvil também entrevistaram oficiais e policiais que haviam participado da luta contra a esquerda armada, tanto em funções de coordenação quanto nas de combate.

Em 1988, o livro do exército ficou pronto. Batizado de As Tentativas de Tomada do Poder, ele citava (sempre de forma pejorativa) mais de 1.700 inimigos das Forças Armadas. Leônidas tratou de reunir-se com o então presidente da República, José Sarney, para discutir a sua publicação. Explicou-lhe que a obra era uma arma para defender as Forças Armadas das campanhas sórdidas que vinham sendo desferidas pelas esquerdas. No futuro, disse Leônidas, sempre que uma voz se levantasse contra a ditadura, lá estaria o livro do CIE para contra-atacar, revelando “a verdade”. Sarney ouviu Leônidas quieto, sorriu amarelo e em seguida começou a desarmar a bomba que estava em seu gabinete.

O presidente argumentou que a publicação do livro reabriria feridas que começavam a cicatrizar. Como a Lei da Anistia, de 1979, tinha beneficiado tanto os adversários da ditadura quanto os agentes da repressão, melhor seria esquecer o tema, sugeriu Sarney. O general não gostou, mas, como bom soldado, obedeceu. E assim o livro foi engavetado, passando a compor o extenso rol de documentos secretos do CIE.

No correr dos anos, entretanto, o livro acabou sendo contrabandeado para fora do QG do Exército. Ao passar para a reserva, um oficial que participara do Projeto Orvil levou consigo uma cópia da obra. A edição correu de mão em mão, num círculo ultra-fechado de oficiais da ativa e da reserva. Algumas cópias foram feitas e deixadas com pessoas-chave, a maioria delas ligada a organizações de extrema direita que congregam militares e civis, como o grupo Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), sediado no Rio de Janeiro. Assim, com aproximadamente apenas 15 cópias disponíveis, o livro secreto – rebatizado de O Livro Negro do Terrorismo no Brasil – se tornou uma espécie de Santo Graal dos militares linha-dura. Era essa a relíquia que eu buscava.

No ano 2000, sem identificar a origem dos textos, o Ternuma divulgou em seu site (www.ternuma.com.br) cerca de 40 das 966 páginas do livro (pouco mais de 4% do total). A novidade atiçou a imprensa, e o general Leônidas acabou confirmando a existência do documento. Seu conteúdo, no entanto, continuava misterioso. Sempre que havia espaço, eu perguntava a minhas fontes do meio militar se conheciam o tal livro. Uns diziam que não, outros falavam que já tinham visto, alguns poucos contavam uma ou outra passagem da obra, mas ninguém se dispunha a me ajudar a conseguir uma cópia. Em 2005, depois de sete anos de pesquisa, publiquei Ministério do Silêncio sem ter conseguido um dos meus objetivos: revelar o conteúdo do livro secreto. Tive informações seguras apenas para escrever, em singelos dois parágrafos, que a obra existia e que continuava desconhecida.

Apesar da frustração, não desisti de encontrar o Santo Graal do CIE. Prossegui questionando fontes, mas, como ocorrera anteriormente, fui acumulando negativa atrás de negativa. Até que, em fevereiro deste ano, o livro secreto caiu no meu colo, ou melhor, nas minhas mãos.

“Aqui está a verdade”, disse ele. “Parece interessante”, retruquei. Num primeiro momento, tive receio em demonstrar muito interesse pelo documento e acabar provocando o recuo da minha fonte. Enquanto folheava o livro, fiquei imaginando se minha fonte me deixaria copiá-lo. Resolvi arriscar: “Posso levar esse livro comigo para ler em casa?”. “Ah, esse não”, respondeu ele. “Você pode consultar sempre que quiser, aqui na minha casa, mas não pode levar.” Continuei então fazendo o tipo desinteressado. Conversamos mais um pouco, folheamos outros livros e acabei indo embora de mãos vazias.

No táxi, fui fazendo planos e contas: se eu fosse à casa da minha fonte uma vez por semana e lesse 15 páginas por dia, copiando o que havia de mais importante, em um ano e quatro meses teria lido todo o livro. De volta à redação do jornal onde trabalho, comentei com um colega que tinha encontrado um pote de ouro, mas não pudera carregá-lo. “Como assim?”, ele perguntou. Expliquei o caso, e o sujeito compreendeu meu drama. “Putz, se você quiser podemos ir lá juntos tentar resolver isso”, sugeriu em tom de deboche. “Eu seguro o cara enquanto você pega o livro e sai correndo.” A piada era fraca, e meu humor não estava lá essas coisas. Fui embora para casa refazendo meus cálculos e tentando traçar novas estratégias.

Esperei uma semana para ligar de novo para minha fonte. Falei de vários assuntos antes de entrar no tema que me interessava. “E aquele livro da capa preta que você me mostrou? Queria dar mais uma olhada nele. Posso passar aí?” O sujeito estava atrasado para um compromisso e ficaria fora a tarde toda. Contudo, não queria fazer uma desfeita para mim. “Olha, passa aqui e pega o livro. Depois você me devolve.” Essa chance eu não deixaria passar. “Estou indo praí agora”, respondi.

Fui à casa dele, peguei o livro e voltei para a redação. No mesmo dia, fiz pessoalmente duas cópias do documento, para desespero da fila do xerox. Era uma brochura artesanal, escrita a máquina de datilografia, com capa dura e título na cor dourada. No lugar do nome do autor, um enigmático “Grupo de pesquisadores anônimos”. Passei o resto do dia assobiando e pensando baixinho: “Ele é meu! Ele é meu! Ele é meeeeeeeu!”. Agora, o próximo passo era digerir o bicho.

Nos dois meses seguintes, me enfurnei numa salinha vazia ao lado da redação com o livro secreto e mais 12 obras de referência histórica. Comparei relatos, chequei datas e confrontei versões referentes a centenas de passagens da história recente do país, como o golpe militar (1964), a morte do estudante Edson Luís, no Rio (1968), a instauração do AI-5 (1968), o seqüestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick (1969), assaltos a bancos praticados por grupos de esquerda, as campanhas militares contra a Guerrilha do Araguaia (1972-75) e o movimento das Diretas-Já (1984).

Os campeões de aparições no livro – os guerrilheiros Carlos Lamarca, da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), e Carlos Marighella, da Aliança Libertadora Nacional (ALN), com 51 e 41 citações, respectivamente – eram descritos como bestas-feras, assassinos frios e traidores da pátria. Na lista de personagens, figuravam militantes de organizações de esquerda que haviam participado da luta armada e que mais tarde ocupariam altos cargos da República, como Dilma Rousseff (atual ministra-chefe da Casa Civil), Franklin Martins (ministro da Comunicação Social), Fernando Gabeira e José Genoino (deputados federais) e Fernando Pimentel (prefeito de Belo Horizonte). Também eram citadas pessoas que não tinham pegado em armas e mesmo assim eram consideradas inimigas, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o governador de São Paulo, José Serra, o religioso Frei Betto e o escritor Antonio Callado. No meio artístico, figuravam músicos como Chico Buarque e Geraldo Vandré. O autor de “Apesar de você” (“Hoje você é quem manda/Falou, tá falado/Não tem discussão”), uma das canções mais odiadas nos quartéis, era classificado como comunista infiltrado nos meios artísticos. Já o compositor de “Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores” (“Caminhando e cantando e seguindo a canção/Somos todos iguais braços dados ou não”) levava a pecha de agente de Fidel Castro propositalmente transformado em mártir da censura.

Enquanto a esquerda apanhou feio no livro, sobraram loas para torturadores, assassinos e dois presidentes-generais que comandaram o país nos momentos mais brutais da repressão. O finado Sérgio Fleury (delegado do Dops de São Paulo, líder do Esquadrão da Morte, torturador de presos políticos e assassino de opositores do regime militar, retratado recentemente pelo ator Cássio Gabus Mendes no filme Batismo de Sangue) recebeu a denominação de “incansável lutador contra o terrorismo no Brasil”. Já Octávio Gonçalves Moreira Júnior – o Otavinho, torturador do Dops paulista, assassinado em 1973 por guerrilheiros da ALN, Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) e Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) – é chamado de “doutor Octávio” e merece tratamento de mártir.

O general Arthur da Costa e Silva – ditador que comandou o Brasil entre 1967 e 1969, período marcado pela tortura e morte de centenas de presos políticos em instalações militares – é descrito como tintas amenas. Sua posse no Palácio do Planalto é relatada no livro secreto como um “reencontro (do país) com a ordem constitucional e o estado de direito”. Com seu “tom franco”, sua “mensagem de renovação” e a “clareza com que encarnava a realidade vivida pelo país”, o general “abriu esperanças” no Brasil, afirma a obra. Segundo o livro, “iniciava-se a volta à normalidade”. Detalhe: Costa e Silva foi o mentor e fundador do CIE.

Em relação ao general Emílio Garrastazu Médici, em cujo governo (1969-74) desapareceram quase 150 militantes políticos, o livro secreto é todo candura. Ao narrar os seqüestros de diplomatas estrangeiros realizados por grupos engajados na luta armada, em 1969 e 1970, e ao comentar a decisão do governo Médici de aceitar trocá-los por presos políticos, conforme exigiam os seqüestradores, a obra do CIE afirma que a postura do general representava o “respeito aos direitos humanos sem aspas”, que “se ajustava aos sentimentos humanitários da população”.

Entre um e outro juízo de valor, o documento comprova que o serviço secreto do Exército vigiou adversários mesmo depois do fim da ditadura. Um guerrilheiro que havia renunciado às armas e se exilara no Chile começou a ser seguido quando, já anistiado, retornou ao Brasil. O livro do CIE anota que, “depois de ter passado anos reprimindo o seu homossexualismo”, o ex-guerrilheiro deu “vazão aos seus instintos” e foi viver com outro homem. Em 1985, já no governo José Sarney, portanto, o serviço secreto do Exército continuou no encalço de seu alvo. O documento do CIE afirma que, naquele ano, o ex-guerrilheiro trabalhava em uma sauna gay.

Escrito na ordem cronológica e em forma de relatório (no dia 1º aconteceu isso; no dia 2 aconteceu aquilo; no dia 3, aquilo outro…), o texto do documento do CIE é mais desagradável que um porre de gim. Saltam das páginas expressões típicas da caserna e das delegacias. Um guerrilheiro que conseguia escapar ao cerco policial ao ser descoberto em seu esconderijo era descrito como um “subversivo” que fugia em “desabalada carreira” ao ser flagrado em seu “homizio”. Dureza!

Em alguns trechos, contudo, era impossível não achar graça dos recursos utilizados pelos agentes-escritores do CIE no cumprimento da missão de denegrir a esquerda. Ao contar como a Polícia Militar paulista havia dissolvido o 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), realizado clandestinamente em 1968, em um sítio em Ibiúna (SP), o redator escreveu: “No local, foram encontrados drogas, bebidas alcoólicas e grande quantidade de preservativos, muitos já utilizados”. Ainda segundo o livro, “alguns estudantes chegaram a declarar inclusive que havia uma escala de serviço de moças para atendimento sexual” dos líderes estudantis. Pelo sim, pelo não, telefonei para Vladimir Palmeira, um dos estudantes presos em Ibiúna e que na época presidia a União Metropolitana de Estudantes (UME). Li para ele o trecho e, do outro lado da linha, Vladimir não conteve o riso. “Se de fato havia esse atendimento sexual, não me informaram. Fui isolado”, disse entre gargalhadas. Depois, já sério, voltou a comentar: “Isso é uma chacota”.

A graça, contudo, acabou logo em seguida, quando comecei a ler os trechos do livro em que eram descritas as mortes de militantes de esquerda e de guerrilheiros que atuaram no campo e nas cidades. Era a parte mais dramática e também a mais importante do documento. Ao comparar as narrativas contidas no livro com os processos oficiais das 380 vítimas fatais da ditadura, descobri que minha fonte realmente tinha razão: a obra trazia verdades. Mais que isso: jogava luz sobre alguns dos episódios mais sombrios da história do país.

O livro do Exército desmente o próprio Exército ao relatar o destino de 23 militantes e guerrilheiros mortos em diversos pontos do país e no exterior. Oficialmente, a força terrestre sempre negou que tivesse participado da morte ou do desaparecimento daquelas pessoas – 16 integrantes do PCdoB que atuavam na Guerrilha do Araguaia (Pará), três militantes do Movimento de Libertação Popular (Molipo), três da VPR e um da ALN. A força terrestre dizia ainda não possuir informações a respeito delas. O livro secreto provava, no entanto, que o Exército mentia.

As páginas 724 e 725 do documento, por exemplo, demoliam a versão de que a força terrestre nada sabia sobre o desaparecimento de Antônio Carlos Monteiro Teixeira, José Toledo de Oliveira e Francisco Manoel Chaves, em 1972, quando o trio se encontrava engajado na Guerrilha do Araguaia. O Exército, como revelava o documento, tinha matado os três. O livro secreto conta a história:

“No dia 29 (de setembro de 1972), um grupo de quatro ou cinco terroristas tentou emboscar um GC do 10º BC. Os terroristas montaram uma emboscada numa capoeira. Percebida a ação, em razão dos ruídos produzidos pelos subversivos, foi montada uma contra-emboscada, na qual morreram três terroristas: Antônio Carlos Monteiro Teixeira, José Toledo de Oliveira e José Francisco Chaves (N.R. O nome correto é Francisco Manoel Chaves).”

Outros três guerrilheiros desaparecidos no Araguaia há 35 anos, os quais o Exército nega ter matado, têm seus últimos momentos descritos na página 725 do documento: “Ainda nesse dia (29 de setembro de 1972), um grupo de terroristas aproximou-se de um casario. Um deles foi visto, no momento em que retrocedia, por um dos componentes de uma patrulha do 6º BC. A patrulha empreendeu perseguição aos subversivos e no tiroteio travado, acabou por matar três terroristas do grupo: Ciro Flávio Salazar de Oliveira (Flávio) e Manoel José Nurchis (Gil), do destacamento B, e João Carlos Haas Sobrinho (Juca), da Comissão Militar (…)”

O documento narra a prisão do guerrilheiro Boanerges de Souza Massa, do Molipo:
“No dia 21 de dezembro (de 1971), foi preso em Pindorama, em Goiás, utilizando nome falso, Boanerges de Souza Massa.”

Oitenta e sete páginas adiante, o livro conta que Boanerges foi submetido a interrogatórios e chega a dizer as informações que ele teria “aberto”. Curioso é que o guerrilheiro desapareceu naquele ano e nunca mais voltou a ser visto. Até hoje, o Exército não reconhece a prisão nem a morte de Boanerges. Para a família não resta dúvida: ele foi assassinado no cárcere.

Outro trecho revelador do livro refere-se a Wânio José de Mattos, integrante da VPR que desapareceu no Chile em setembro de 1973, após o golpe militar que depôs o presidente Salvador Allende. Só em 1992, quando os arquivos chilenos foram abertos, a família de Wânio foi informada, pelas autoridades daquele país, de que, por falta de atendimento médico, ele morrera de peritonite aguda no Estádio Nacional, onde se encontrava preso.

Contudo, pelo menos quatro anos antes da abertura dos arquivos chilenos, o Exército brasileiro já tinha conhecimento da versão, como mostra a página 788 do livro secreto. O trecho em que se lê “Wânio José de Mattos morreu no Chile, em 1973, com peritonite” é mais uma prova de que, a partir do início da década de 1970, as ditaduras do Cone Sul atuavam em estreita sintonia na guerra suja que travavam contra seus opositores, parceria que ficou conhecida com o nome de Operação Condor.

Dois outros casos macabros que o livro secreto traz são os de Antônio dos Três Reis Oliveira (ALN) e Alcery Maria Gomes da Silva (VPR). Até o documento do CIE vir à tona, sabia-se apenas que Antônio fora assassinado pela repressão em 1970 e enterrado como indigente no Cemitério de Vila Formosa, em São Paulo. Seu corpo nunca foi encontrado. Já em relação a Alcery, era conhecido o fato de que ela morrera no mesmo ano pelas mãos dos agentes da Operação Bandeirantes (Oban) e que o destino de seu corpo era ignorado. Apesar de todos os apelos feitos por parentes e grupos de direitos humanos, o Exército sempre negou que tivesse informações que pudessem ajudar na localização dos restos mortais de Antônio e Alcery. Pior: nem ao menos reconheceu que ambos estivessem mortos. Entretanto, o livro do CIE revela na página 544 que o Exército sempre soube da verdade: “No dia 17 (de maio de 1970), em São Paulo, foi preso o recém-designado comandante da UC, Oswaldo Soares, que entregou seu aparelho, como já narrado, onde morreram sua companheira Alcery Maria Gomes da Silva e Antônio dos Três Reis Oliveira.” O documento do serviço secreto do Exército mostra que a força terrestre escondeu informações até mesmo sobre a morte de seus homens. Um deles é o sargento Mário Ibrahim da Silva. O militar tombou no Araguaia, em 1972, quando combatia guerrilheiros do PCdoB. A família de Mário nunca recebeu do Exército uma versão oficial do que aconteceu a ele. O caso foi investigado pelo jornalista Eumano Silva, autor de Operação Araguaia (Geração Editorial, 2005), um dos melhores livros sobre o episódio, vencedor do Prêmio Jabuti. No capítulo intitulado “Mistério: como morreu o sargento Ibrahim”, o jornalista conta que entrevistou a viúva do militar. “Ela diz que ouviu muitos boatos. Um deles dizia que o Ibrahim havia sido morto por engano por outro militar”, afirma Eumano. Com 35 anos de atraso, a versão do Exército aparece agora no livro secreto: “No dia 27 (de setembro de 1972), os terroristas investiram contra uma base do 2º Batalhão de Infantaria da Selva, situada na localidade de Pavão. O comandante do grupo de combate que estabelecera a base, 2º sargento Mário Ibrahim da Silva, ao tentar chegar ao local da incursão, foi atingido por um disparo desferido por um dos terroristas. Contam seus companheiros que o sargento Mário, mesmo ferido e após haver descarregado sua arma, deu ordens ao grupo (…), (falou) de sua família, esposa, filhos e mãe e faleceu”.

Ao terminar a análise do livro, um raciocínio óbvio vinha à minha cabeça. Se o CIE sabia o dia e o local da morte de militantes e guerrilheiros – em alguns casos, conhecia até a guarnição a que pertenciam seus algozes – é provável também que soubesse onde eles tinham sido enterrados. Por que então o Exército insistia em dizer que não tinha informações sobre eles, negando às famílias o direito de enterrar seus entes? Quem eram os responsáveis pela violação da mais elementar regra de guerra, prevista na Convenção de Genebra, de 1864, que determina a identificação, o sepultamento e a posterior devolução dos inimigos mortos em combate?

A bomba que Sarney desarmara em 1988 estava pronta para explodir em 2007. Faltava só uma coisa: conseguir provar que a cópia que eu possuía era autêntica.

A internet (louvada seja!) me deu a primeira prova de que o que eu tinha em mãos era um exemplar verdadeiro do livro secreto e não uma fraude. Comparei trechos do exemplar em meu poder com as 40 páginas do documento divulgadas há sete anos no site do Ternuma, que trazem entre outros relatos o seqüestro do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, em 1970. Bingo! Na maioria dos casos, os textos eram idênticos. Quando não o eram, podia-se ver claramente que eram adaptações.

Para obter a segunda prova, entrevistei pessoas que figuravam como personagens do livro, como os professores Daniel Aarão Reis Filho e Cid Queiroz Benjamin, o engenheiro Maurício Paiva e o frei dominicano Oswaldo Resende Júnior. Ao tomarem conhecimento dos trechos em que eram citados, todos apontaram erros e manipulações, mas confirmaram a veracidade de inúmeros detalhes que ainda não são de conhecimento público. Frei Oswaldo, por exemplo, surpreendeu-se em saber que o Exército tinha informações pormenorizadas sobre uma reunião da ALN realizada em Roma, em 1971, na qual se discutiu o racha vivido pela organização. Já Cid Queiroz Benjamin, que participara do seqüestro do embaixador norte-americano, observou que, apesar de alguns pequenos erros, o livro secreto trazia muitos detalhes sobre a ação, como a cor de veículos usados pelos guerrilheiros e as senhas utilizadas nos contatos por telefone. “Só faltou dizer qual era a cor das nossas camisas”, afirmou o hoje professor de jornalismo. “As informações contidas no livro sem dúvida foram tiradas dos arquivos dos DOI-Codi”, deduz Cid.

Para não deixar um fiapo de dúvida em relação à autenticidade do livro, passei depois a compará-lo com outros documentos confidenciais do Exército. Constatei então, em três oportunidades, que trechos do livro tinham sido baseados ou mesmo copiados de documentos secretos da força terrestre. Era o que acontecia, por exemplo, nas páginas 721 e 722 do livro, referentes ao combate à Guerrilha do Araguaia, onde se lia: “A localidade de Santa Cruz, por exemplo, dista 600 quilômetros da sede do município, em Conceição do Araguaia, e a única ligação existente entre elas é o rio, demorando a viagem entre uma localidade e outra uma média de 5 dias”.

Texto praticamente idêntico aparece em documento do Ministério do Exército de 30 de outubro de 1972, classificado como secreto. Compare:

“(&) A localidade de Santa Cruz dista 600 quilômetros da sede do município em Conceição do Araguaia e a viagem pelo rio, único meio de ligação, demora da ordem (sic) de 5 dias”.

O livro do Exército era, pois, verdadeiro e já não era mais secreto. Em abril, um resumo do seu conteúdo foi tornado público nas páginas dos jornais Estado de Minas e Correio Braziliense. A reação foi imediata. O Ministério Público Federal criou uma comissão de cinco procuradores para analisar possíveis providências a serem tomadas. Já a Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos Políticos, que tem a dupla incumbência de julgar a responsabilidade do Estado na morte de militantes políticos e procurar restos mortais de desaparecidos, começou a discutir a provável reabertura de pelo menos um caso, o de Wânio José de Mattos, que morreu no Chile.

Há ainda a esperança de que as informações contidas no livro possam auxiliar na localização dos corpos dos 69 guerrilheiros desaparecidos no Araguaia entre 1972 e 1975.

O Exército calou-se. A Presidência da República, idem. Desde que tomou posse, em 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vem se esforçando ao máximo para ignorar a questão dos desaparecidos políticos. Apesar dos reiterados pedidos, nunca, por exemplo, recebeu a comissão de familiares dos militantes que foram à luta contra a ditadura e não voltaram para casa. Outros dois gestos do presidente revelam sua vontade de jogar o tema para debaixo do tapete. Ainda em 2003, Lula mandou a Advocacia Geral da União (AGU) recorrer da decisão judicial que condenou a União a abrir as informações das Forças Armadas referentes aos combates contra a Guerrilha do Araguaia. A ação, iniciada em 1982, era movida por 22 familiares de desaparecidos e tinha como advogados Sigmaringa Seixas e Luiz Eduardo Greenhalgh, que mais tarde se tornariam destacados deputados federais pelo PT. O recurso da AGU acabou sendo derrotado, mas, ainda assim, até hoje o governo não acatou a sentença da Justiça.

Lula fez mais (ou melhor, menos): manteve a regra criada na última semana do governo Fernando Henrique Cardoso que instituiu a esdrúxula figura do sigilo eterno para documentos confidenciais. Até então, uma lei de 1991 determinava o prazo limite de 60 anos para a abertura de papéis oficiais classificados como sigilosos. A chiadeira foi geral, mas Lula deu de ombros. A coisa, entretanto, promete não acabar assim. No final de maio, o Ministério Público Federal patrocinou o simpósio Debate Sul-Americano sobre a Verdade e Responsabilidade em Crimes contra os Direitos Humanos. Ao final dos trabalhos, foram tiradas várias recomendações, entre elas uma solicitação para que o procurador-geral da República, Antônio Fernando Souza, proponha uma ação de inconstitucionalidade contra a lei do sigilo eterno.

A pressão sobre o presidente também vem de dentro do governo. No final de abril, a Comissão Interministerial do Araguaia encerrou suas atividades sem ter conseguido avançar na questão da localização dos corpos dos 69 guerrilheiros desaparecidos. A comissão deixou claro, entretanto, que poderia ter tido algum sucesso caso tivesse contado com a colaboração das Forças Armadas. Ao se ver impossibilitada de seguir adiante, a comissão acabou devolvendo o abacaxi, sugerindo a Lula que exija, no prazo de 120 dias, que os militares abram os arquivos secretos do Araguaia.

Ainda neste semestre, o tema Araguaia voltará a assombrar o Palácio do Planalto.

A Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos Políticos (formada por representantes dos familiares, do governo, das Forças Armadas, do Ministério Público, da Câmara dos Deputados e da sociedade) fará uma expedição ao sul do Pará para uma nova tentativa de localizar restos mortais de guerrilheiros. O mínimo que pode acontecer é o retorno do assunto às primeiras páginas dos jornais.

Como se vê, será difícil para o presidente ignorar por muito mais tempo que os mortos assombram seu governo. A gritaria também acontece fora do país. A Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) deverá ainda neste ano julgar o Brasil em um caso que se arrasta há 12 anos e que é acompanhado, com interesse, internacionalmente. Acusação: falta de investigação por parte do Estado a respeito da destruição e da ocultação de cadáveres ocorridas durante os combates à Guerrilha do Araguaia. Caso o Brasil seja condenado, possibilidade hoje bastante grande, será um vexame internacional. Lula, que construiu sua imagem como defensor dos oprimidos, passará a figurar no rol de presidentes cujos governos violaram os Direitos Humanos. “Por que esta dificuldade em abrir os arquivos da repressão, em especial os do Araguaia? Quem não deve não teme”, questiona Jorge Zaverucha, cientista político da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e um dos maiores especialistas do país em questões militares.

O Exército insiste na versão de que os documentos da repressão, incluindo os relativos às campanhas no Araguaia, foram destruídos. O governo Lula finge acreditar. O livro secreto do CIE, porém, está aí para quem quiser consultar. Lá está escrita “a verdade”.

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[ARQUIVO DE REPÓRTER] Deu a louca no serviço secreto

Mais um dia mergulhado na escrito do meu próximo livro. Conforme combinado, segue um novo post da série Arquivo de repórter.

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Desde 1998, quando comecei as pesquisas que desaguariam em Ministério do Silêncio – A história do serviço secreto de Washignton Luís a Lula (1927-2005), tenho tentado acompanhar os bastidores do serviço secreto, que hoje responde pela sigla Abin (Agência Brasileira de Inteligência). Em 2007, por intermédio de uma fonte de dentro do serviço, soube que algumas comunidades de agentes da Abin usavam as redes sociais para trocar ideias e opiniões – além de reclamar dos chefes. Segui os rastros e descobri o divã do serviço secreto. O resultado foi uma reportagem especial para a Rolling Stone.

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Deu a louca no Serviço Secreto

Lucas Figueiredo, para a Rolling Stone (outubro de 2007)

“Se os repórteres entrassem aqui, (…) a fachada da Abin iria por água abaixo.” A mensagem, assinada por alguém que se identifica como Desmascarador, era uma entre tantas outras postadas nos fóruns de discussão que pipocam a cada dia patrocinados por funcionários e ex-funcionários da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) – nome e sigla atuais do serviço secreto do Brasil. As salas virtuais onde os arapongas se encontram surgem do nada, crescem como hera e, na maioria das vezes, desaparecem sem deixar rastro. No tempo em que permanecem no ar, entretanto, retratam a fase difícil pela qual passa a Abin.

Nas rodas virtuais de que Desmascarador, mais conhecido nos fóruns do serviço secreto como Desma, participa, ninguém se importa em saber o que é real ou inventado na sua sua ficha-perfil ou identidade. Afinal de contas, segredo é a chave do negócio dessa turma. Todos ali (Desma, Maria Cláudia, Mestre, JClayton, Flobela Dalma, Agente 86, Almeida, 4366, Sun Tzu BR, entre outros) são agentes secretos.

No ano em que o serviço secreto brasileiro completa 80 anos, muitos de seus agentes resolveram usar a internet para debater (e denunciar) a crise que assola a instituição.

Agente 86, o da TV

Nos fóruns, os agentes tratam de temas como a evasão contínua de pessoal causada pelo descontentamento, a falta de rumo da instituição, os baixos salários e um certo apego do órgão ao passado negro da ditadura militar. É roupa suja que não acaba mais. Segui a dica de Desma e durante quatro meses, guiado por uma fonte da Abin, visitei diariamente oito fóruns virtuais mantidos por agentes e ex-agentes secretos. Depois de ler centenas de mensagens, a conclusão é uma só: a barra está pesada.

E pesada para todo mundo. A crise de identidade no serviço secreto não fica restrita ao corpo de agentes. Atinge também a cúpula do órgão. Para comemorar os 80 anos da atividade de inteligência no Brasil, a direção da Abin produziu recentemente uma cartilha com a história da instituição. Em vez de se ater aos fatos, entretanto, a cúpula do órgão optou por reescrever, com tintas mais amenas, o que aconteceu com o órgão nessas oito décadas (e sobretudo o que ele fez acontecer). Em resumo: para tornar seu passado menos sombrio, o serviço secreto encarnou Poliana. Assim, o que era pecado virou virtude. O desvio dos homens foi tratado como caminho natural das coisas. A anomalia se tornou uma regra. E a tragédia, uma realização a ser contemplada.

Somando a delirante releitura da História feita pela direção da Abin com a catarse pública de seus agentes, o quadro final sugere que o problema é coisa para ser resolvida em divã. O serviço secreto, por assim dizer, perdeu o eixo.

Ao contrário do que se poderia imaginar, a quase totalidade dos fóruns virtuais freqüentados por agentes secretos brasileiros é aberta ao público. Para se ter idéia do que isso representa, basta ver o que acontece neste momento nos Estados Unidos. As agências de inteligência norte-americanas, incluindo a CIA, se preparam para ingressar, a partir de dezembro, no A-Space, uma comunidade on-line criada para que agentes de diferentes órgãos possam trocar informações com segurança. Dividido por área de interesse (terrorismo, narcotráfico, lavagem de dinheiro etc.), o A-Space terá acesso restrito, ou seja, quem não for agente secreto não entra. Mesmo com todos os cuidados tomados para barrar a entrada de estranhos, a iniciativa está sendo definida dentro da própria CIA como “o pesadelo da contra-informação” (contra-informação é área encarregada de evitar a espionagem inimiga).

Se nos EUA é assim, no Brasil a coisa é diferente. É fácil entrar nas salas de bate-papo da comunidade de inteligência brasileira. Difícil, porém, é encontrá-las. A vida útil dos fóruns é curta, e seus freqüentadores vivem pulando de um endereço virtual para outro. Nos quatro meses em que rastreei conversas dos agentes secretos na internet, quatro salas foram fechadas sem aviso prévio. Do dia para a noite, fóruns que antes davam acesso a discussões acaloradas (como Abin Discussão, Inteligência Civil e Abin Vale Tudo, hospedados no Yahoo) passaram a exibir a irritante expressão “grupo não encontrado”. Dos fóruns que permaneceram na ativa, destacam-se o Analistas da Abin e o Carcará Sanguinolento.

O Carcará Sanguinolento é onde a turma pega mais pesado. Foi criado em abril deste ano pela Associação dos Servidores da Abin (Asbin), entidade que reúne agentes secretos e que, historicamente, mantém uma relação conflituosa com a direção da Abin. Maria Cláudia (a da foto da Shakira) é uma das freqüentadoras do fórum, assim como X Files, Milico, Alvinegro, Coisoruim, LeCarrè e Honesto.

No mesmo dia da inauguração da sala virtual, ASDF fez o seu registro. E, no único comentário que postou, foi direto ao ponto: “Creio haver uma crise de identidade no órgão”. ASDF citou especificamente a “luta fratricida” entre os servidores da Abin, os constantes vazamentos de informações e o descrédito do serviço secreto perante a sociedade.

Outro que joga suas críticas no ventilador é o presidente da Asbin, Nery Kluwe, o único agente que se identifica no fórum com seu nome e sobrenome verdadeiros. “A agência tem um gene de que o governo não gosta. O gene do passado, o gene do araponga, que, antes de ser um observador apto e competente dos fatos, vive de bisbilhotar, de atemorizar, de constranger, de impedir o exercício de direitos, de maldizer, de pré-julgar, enfim, de agir atabalhoadamente, inspirado numa crença inarredável de sua própria idiotização e mediocrização”, escreveu Kluwe num de seus muitos posts explosivos.

Desde a inauguração do Carcará Sanguinolento, o dirigente usa o fórum para bater forte na direção da Abin. “Vivenciamos falta de gestão, formação deficiente, relacionamentos complicados, soberba, entulho autoritário dos tempos negros da História, afronta aos direitos e às garantias fundamentais, assédio moral, enfim…”. Em outra mensagem polêmica, Kluwe relacionou a inércia da Abin, que pouco produz hoje em dia, com os baixos salários pagos aos agentes: “Se ao que parece fingimos que trabalhamos, o Governo, a seu turno, finge que nos paga”. Kluwe, no entanto, também apanha nos fóruns. Já foi acusado por seus colegas de vazar informações da Abin para a imprensa e de criticar muito mas fazer pouco para debelar a crise no órgão. “Todas as reclamações são bem-vindas. Gostamos de porrada (de levar e dar)”, respondeu ele, num post, ao ser criticado por Thumper.

A crise atinge, em especial, os novos agentes. Desde 1994, o ingresso no serviço secreto é feito mediante um concorridíssimo concurso público – uma exigência algo bizarra da Constituição. A peneira é fina. Os candidatos a James Bond tupiniquim têm de dominar pelo menos uma língua estrangeira e ter curso superior. O salário inicial, contudo, é baixo: cerca de R$ 3.500, líquido.

Além do incentivo financeiro pouco expressivo, a jovem guarda do serviço secreto se depara com uma instituição sucateada e dirigida por veteranos do antigo Serviço Nacional de Informações (SNI), o avô da Abin que serviu de sustentáculo à ditadura militar (1964-1985). Nesse contexto nada promissor, os chamados “concursados” ainda são impedidos de ascender aos cargos mais altos, sobretudo àqueles ligados à área de operações (ou seja, as atividades de espionagem). Na maioria das vezes, eles ficam lotados em áreas mais burocráticas, processando informações de fontes abertas. Em outra palavras, lendo jornais, revistas e publicaçõs especializadas do Brasil e do exterior.

O resultado é um descontentamento gigantesco entre os agentes da nova geração – descontentamento que se transforma em índices de evasão de até 70% nas turmas aprovadas em concurso. “Quer entrar na Abin para ser o quê? Administrador? Tradutor? Instrutor de idiomas? E nada mais? Ou pensam em executar uma atividade de espionagem de Estado propriamente dita? É bom avisar para que não entrem numa furada e se frustrem, se acaso seu objetivo for atuar de verdade como agente secreto”, alertou Desmascarador numa mensagem dirigida aos candidatos a agente secreto, assíduos freqüentadores dos fóruns.

Como dois terços dos novatos acabam tirando o time de campo e o outro terço não tem chances de ascensão, a Abin vem experimentando, nos últimos anos, uma atrofia perigosa. De 5 mil funcionários no início da década de 1980, auge dos tempos do SNI, restam hoje cerca de 1.500, muitos deles à beira da aposentadoria. O fosso entre a nova e a velha guarda, aliado à falta de clareza quanto ao papel institucional da Abin no pós-ditadura, vem provocando uma paralisia no serviço secreto. Em poucas palavras: as atividades clássicas de espionagem são coisa cada vez mais rara na Abin.

A inércia do serviço secreto é um tema recorrente nos fóruns. Que o diga Milico. “Para corroborar com a opinião de todos, declaro que na minha unidade nada se faz”, escreveu o araponga, no Carcará Sanguinolento, às 9h08 do dia 1º de junho. Mais explícito ainda foi Kluwe: “Se não nos insurgirmos contra esse malsinado processo de fazer inteligência com a bunda na cadeira e o dedo na internet, somos desonestos com o país, com a agência e com nós mesmos!”.

Outro campeão de audiência nos fóruns dos arapongas são as medidas implementadas por Márcio Paulo Buzanelli, diretor-geral do serviço secreto demitido no início do mês passado. Nos dois anos de sua turbulenta gestão, uma das principais realizações da Abin foi um programa que visava aproximar a agência das crianças e dos adolescentes. Um dos frutos dessa iniciativa é uma revista em quadrinhos em que o personagem principal, Agente Jovem, conversa com um cachorro chamado Paco (o mesmo nome do cão de Buzanelli), escapa de jacarés na Amazônia e ajuda a prender contrabandistas de animais silvestres. Não pára por aí. No site da agência (www.abin.gov.br), foi criado um teste para crianças com perguntas do tipo “Qual é a cor do cavalo branco de Napoleão?”.

Símbolo da Abin: carcará na área

Buzanelli instituiu também uma nomenclatura nova para os cargos do serviço secreto, inspirada nas Forças Armadas. Com a mudança, o diretor-geral passou a ser chamado de comandante, os agentes são tratados por oficiais, os funcionários de nível mais baixo são subcomissários e assim por diante.

Oficial da reserva do Exército, da arma de infantaria, Buzanelli também criou um hino para a Abin. Ele próprio fez a letra e depois montou uma parceria com o general Paulo Uchôa, titular da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), que fez a música. Em tom marcial, o hino é de fazer inveja nos quartéis. A gravação original é executada por uma banda militar, com fartura de pratos, taróis e uma poderosa tuba. A canção tem passagens como “Nós somos da inteligência brasileira/Anônimos heróis na busca da verdade/Servir sempre em silêncio temos por bandeira/E à pátria consagrar nossa lealdade” e “A Abin é a luz forte que dissipa a escuridão/Desfaz as incertezas e desvenda o sorrateiro” ou ainda “Salve! salve! a nossa pátria brasileira/Orgulho temos nós em tê-la num altar”. Aos amantes da música trash-verde-oliva, vale a pena ouvir o hino, disponível no site da Abin.

A canção, é claro, não poderia passar batida nas discussões virtuais dos agentes secretos. O araponga que se esconde sob o pseudônimo Carcará Sorrateiro (não confundir com o fórum Carcará Sanguinolento) fez uma versão do hino e, como mostram dois trechos da letra, a intenção foi das piores: “Nós somos da insipiência brasileira/Anônimos bocós em busca de copiar/Servir sempre em silêncio temos por arreios/E ao marechal fingimos nossa lealdade” e “Abin é a cruz pesada que temos de carregar/Copiando e colando – tudo muito sorrateiro”.

O pseudônimo escolhido por Carcará Sorrateiro é uma referência jocosa ao símbolo da Abin, outra criação da lavra de Buzanelli. Desde 2005, o serviço secreto brasileiro é representado pelo carcará, espécie de falcão, encontrado na América do Sul, celebrizado na possante voz de Maria Bethânia (“Carcará, pega, mata e come”). A escolha do carcará não agradou a todos, como mostram os fóruns dos arapongas (aliás, outra ave, conhecida pelo grito estridente). “Não é à toa que a ave-símbolo da atual gestão é o carniceiro gavião carcará, ave que disputa território com urubus”, escreveu Libertas. Kluwe vai na mesma linha: “O carcará é uma ave carniceira, que inclusive come seus próprios companheiros. Se nossa ave-símbolo devora os próprios companheiros, o que podemos esperar dos companheiros do governo?”.

Maria Bethânia: “pega, mata e come”

Se dependesse de Carcará Sorrateiro, como ele próprio expôs em suas inconfidências virtuais, seriam outros os personagens a representar a Abin: o inesquecível Agente 86, o não menos desastrado agente Austin Powers, além dos Três Patetas e do boneco Pinocchio. Moral baixa é isso aí. “A Abin não faz nada. O trabalho se resume a elaborar relatórios baseados em informações da imprensa e em alguns poucos dados de origem duvidosa, coletados, em sua maioria, por outros órgãos”, afirma ele.

Durante os preparativos dos Jogos Pan-Americanos no Rio, a baixa produção da Abin foi um tema constante. No dia em que o Jornal Nacional, da TV Globo, exibiu uma reportagem mostrando o Centro de Inteligência dos Jogos (CIJ), coordenado pelo serviço secreto, choveram comentários maliciosos. O primeiro post foi de Milico: “Apareceu (na reportagem) até o grandão que faz o malote no Rio, e o carcará-mor (Buzanelli) com aquele velho discurso de segurança nacional, informação, estratégia. Dizem que vai haver uns telões lá mostrando toda a movimentação. Que movimentação? Alguém tem noção da movimentação que vai haver nesse Pan no Rio? Esse pessoal vai ficar é vendo os jogos, ficar o dia inteiro na internet. Imaginem a final do vôlei ou do futebol com a presença do Brasil. Alguém acredita que eles (agentes designados para o CIJ) não vão ficar vendo os jogos? Isso tem de ser motivo de piada geral na comunidade de inteligência. Só o Brasil mesmo para mostrar (na TV) a sua central de inteligência. Na verdade, não passa de pura propaganda e muito mal feita. Viram só as telinhas de computador com o logotipo do carcará, tudo bonitinho? Viram só as plaquinhas azuis de terrorismo, crime organizado? A Abin analisando crime organizado no Rio de Janeiro? Fala sério!”.

Carcará Sorrateiro foi na mesma linha: “A Abin vai para o Pan-2007 fazer figuração. Quem vai garantir mesmo a segurança são as polícias e as Forças Armadas. Mas a presença da Abin é importante, pois vai render diárias para os apadrinhados”. O comentário recebeu o apoio de Zimmermannac: “O pessoal que está indo agora para o Pan só vai para curtir uma viagenzinha lúdica. As vagas foram disputadas no tapa. O pessoal só está se preocupando em não esquecer a roupa de banho e questões de hospedagem para a curtição total. Trabalho que é bom, nada. Analistas que já estiveram previamente nas instalações do CIJ constataram que na estrutura montada praticamente não há nada para a Abin fazer, a não ser aparecer na foto, como sempre. Tudo que possa ocorrer nos jogos já está devidamente dividido entre os órgãos que realmente vão agir em caso de anormalidades. A Abin não faz nada, como é de praxe”.

A Rolling Stone pediu ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI), a quem a Abin é subordinada, que comentasse as críticas expressas nos fóruns virtuais dos agentes secretos. A resposta foi lacônica: “As observações não expressam o pensamento do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República nem da Agência Brasileira de Inteligência”.

A verdade é que a agência se preocupa (e muito) com a lavação de roupa suja em público promovida por seus agentes. Em dezembro do ano passado, por meio da portaria número 472, a Abin instituiu um código de ética em que impõe a lei do silêncio entre seus servidores. Além de, enfática e reiteradamente, proibir os agentes de revelarem informações do serviço secreto, o código estimula os servidores da Abin a denunciar colegas responsáveis por vazamentos. Nas 12 páginas do código, os agentes são lembrados nove vezes do dever de resguardar informações internas e denunciar aqueles que não o fazem. O artigo 5º alerta que “o servidor da Abin deve zelar pela imagem de sua instituição, garantindo a preservação do sigilo das informações e dos métodos e técnicas operacionais”. O estímulo à denúncia aparece várias vezes. Só no artigo 7º, a obrigação de delatar possíveis gargantas profundas é estabelecida quatro vezes. No trecho relativo aos deveres dos servidores, é imposto como norma “ser leal para com a sua instituição e dar conhecimento imediato à autoridade superior de qualquer fato relativo aos interesses” da Associação Brasileira de Inteligência. O código de ética estabelece três sanções para quem violar as normas: censura, encaminhamento do caso à direção geral para abertura de processo administrativo e exoneração daqueles que ocupam cargo de confiança.

Os fóruns, como não poderia deixar de ser, também refletem a preocupação da direção da Abin com a segurança interna. Numa mensagem postada em maio, decorada com uma carinha triste cercada de interrogações, Agente 86 escreveu o seguinte: “Gostaria de sugerir que este fórum (o Carcará Sanguinolento, da Abin) fosse de acesso restrito aos servidores cadastrados, pois acho uma vulnerabilidade tratarmos de assuntos sensíveis em um espaço passível de acesso a qualquer um”.

A sugestão foi rechaçada. Revelações foi o primeiro a discordar do colega. “Sugiro que não se feche à sociedade este fórum. A sociedade é que nos sustenta com seus impostos e não me parece correto deixá-la no escuro ou bloqueada no que se refere ao futuro e ao presente da Abin”. Kluwe, a quem caberia a decisão final sobre o assunto, descartou a possibilidade de restringir o acesso ao fórum: “Cada um de nós deve ter em mente os estritos limites da confidencialidade ou não dos assuntos abordados. Se auto-censurem, se assim o desejarem. O fórum não censurará ninguém. Qualquer perspectiva de cerceamento seria odiosa e inaceitável”.

A atitude de confronto assumida por Kluwe já lhe valeu um processo administrativo por suspeita de vazamento de informações sigilosas. Nada, porém, foi provado. O que é certo é que o agente não perde uma oportunidade de zoar com a falta de rumo da Abin. No ano passado, a Associação dos Servidores da Abin fez uma enquete em seu site em que perguntava quem deveria ser o novo diretor-geral da agência. Seis opções foram colocadas à disposição:

A) Um profissional do quadro;
B) Um servidor estranho ao quadro;
C) Sargento Garcia;
D) Zorro;
E) O cachorro Muttley, parceiro de Dick Vigarista;
F) O cão Paco (o personagem do gibi da Abin).

Muttley: Abin, faça alguma coisa…

Muttley largou na frente e logo estava disparado na liderança. Foi quando a direção da Abin decidiu recuar e alterou a enquete. Assim, restaram somente as opções A e B, as mais recatadas. “Modifiquei em razão de um pensamento, minoritário e conservador, que achava que nós estávamos avacalhando”, explicou Kluwe na época.

(Uma explicação: Muttley – aquele que sempre pede medalha, medalha, medalha – era mais uma referência à gestão Buzanelli, que mandou fazer medalhas para condecorar servidores que se destacam e “personalidades” de fora do serviço secreto. Os galardões estão disponíveis em 17 versões.)

Enquanto agentes secretos passam os dias a maldizer o presente da agência, sua cúpula briga com o passado. Para comemorar os 80 anos da atividade de inteligência no país, a Abin produziu uma cartilha para contar a história do órgão. O problema é que o texto não se fixa, digamos, apenas na realidade. O início até que vai bem: conta como o embrião do serviço secreto foi criado em 1927, dentro do Conselho de Defesa Nacional, pelo presidente Washington Luís, e relembra o primeiro nome do órgão, instituído em 1958 – Serviço Federal de Informações e Contra-informação (Sfici). Daí em diante é que vêm os escorregões.

General Golbery do Couto e Silva: padrinho do serviço secreto

De acordo com a cartilha, no auge da Guera Fria, o Sfici “começou a atuar cooperativamente com os países do chamado bloco ocidental”. Huummm, não foi exatamente assim que a coisa se deu. A criação do Sfici, pelo presidente Juscelino Kubitschek, foi, na verdade, uma imposição dos Estados Unidos, transmitida pelo então secretário de Estado, John Foster Dulles. Uma comitiva brasileira chegou a viajar aos EUA para aprender, com o FBI e a CIA, técnicas de caça aos comunistas. (Um dos integrantes da comitiva era o jovem capitão Rubens Bayma Denys, que mais tarde se tornaria general e ministro de Estado nos governo José Sarney e Itamar Franco.) Um agente da CIA, Alfred Pease, que acompanhou a comitiva brasileira durante todo o tempo, foi posteriormente deslocado para o Rio de Janeiro, onde passou a dar plantão no Sfici. Ou seja, cooperação não é o substantivo mais apropriado para retratar a relação existente, no final de década de 1950, entre o serviço secreto brasileiro e o governo dos Estados Unidos. Subserviência talvez seja mais adequado.

A cartilha da Abin se perde de vez quando trata de temas relacionados à ditadura. Para início de conversa, o golpe militar, que inaugurou 21 anos de trevas no país, é descrito da seguinte maneira: “O Brasil, no início da década de 1960, apresentou um cenário interno bastante conturbado, gerando manifestações de segmentos da sociedade. O quadro evoluiu para uma intervenção militar no processo político nacional em 1964”. O discurso é empolado, mas só serve mesmo para enrolar. “Intervenção militar” é golpe, e ponto final. E golpe militar em regimes democráticos – é preciso que se diga isso com todas as letras – nunca é a evolução de um quadro, mas sim interrupção. Sorte nossa que a cartilha da Abin não é adotada nas aulas de História.

A agência também pisa em ovos ao falar do seu antecessor, o famigerado SNI. A cartilha diz, por exemplo, que o Serviço Nacional de Informações operava com base num “ordenamento jurídico” próprio, criado “em face das exigências conjunturais”. Errado! O que aconteceu de fato foi que, na tentativa de justificar o injustificável, os governos militares baixaram inúmeras normas e diretrizes para o SNI. Era como se o crime passasse a ser legal. Com base nesse “ordenamento jurídico”, o SNI vigiou e perseguiu os adversários do regime e forneceu suporte aos órgãos da repressão, responsáveis pela tortura de milhares de pessoas e pelo assassinato de pelo menos 380 brasileiros. A cartilha também oculta que o fundador do SNI, general Golbery do Couto e Silva, rejeitou a própria cria, na década de 1980, dizendo a célebre frase, à la doutor Victor Frankenstein: “Criei um monstro”.

O fim da ditadura e a redefinição dos rumos do SNI também receberam tintas amenas na cartilha da Abin. O enquadramento do serviço secreto às normas do Estado Democrático de Direito foi chamado de “depuração do organismo” com o objetivo de eliminar “de suas funções as possíveis tarefas que extrapolassem sua efetiva competência”. Trocando em miúdos: o serviço secreto deixava de ditar quem ia morrer, quem seria torturado, quem seria perseguido e quem deveria deixar o país.

Ao narrar a mudança de sigla no serviço secreto, em 1999, quando o órgão passou a se chamar Abin, a cartilha também não conta toda a verdade. “Com o fim da Guerra Fria, houve um novo redirecionamento de interesses no cenário político e econômico mundial. Mudaram os inimigos e os alvos a serem alcançados”, diz o texto. Que a Guerra Fria acabou, não restam dúvidas. Mas daí a dizer que mudaram os inimigos do serviço secreto já é exagero.

Diferentemente do que fazem seus congêneres de países democráticos (como a CIA nos EUA, o MI-6 na Inglaterra, o BnD na Alemanha e a DGSE na França, que só têm autorização para agir no exterior), a Abin atua dentro do território nacional, bisbilhotando a vida de cidadãos brasileiros. O foco no chamado “inimigo interno” pouco mudou. Para a Abin, os movimentos sociais continuam sendo vistos como uma ameaça em potencial ao país, um alvo a ser vigiado e combatido, independentemente se atuam dentro ou fora da lei. Essa visão ficou expressa na resolução final do 1º Encontro Técnico dos Serviços de Inteligência dos Países da América do Sul, patrocinado pela Abin, em outubro de 2003, ou seja, já no décimo mês do governo Luiz Inácio Lula da Silva. No documento, o serviço secreto brasileiro combinava, com seus parceiros, vigiar os movimentos que tratavam da “questão da pobreza”, por temer que eles pudessem “representar ameaças, preocupações ou desafios a interesses estratégicos dos países da América do Sul”. Quer dizer, enquanto Lula inaugurava seu governo apresentando-se, no Brasil e no exterior, como líder do combate à pobreza, seu serviço secreto espionava aqueles que trabalhavam com a questão.

No mês passado, depois de quase 1.700 dias no poder, Lula finalmente deu sinais de que ele também não estava gostando dos rumos do serviço secreto. O presidente demitiu Buzanelli pelos jornais e colocou em seu lugar o delegado Paulo Lacerda, ex-diretor-geral da Polícia Federal, responsável pelas grandes operações que nos últimos anos abateram poderosos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Com a escolha de um servidor público exemplar e, sobretudo, estranho aos quadros da Abin, Lula acena com o desejo de mudanças. Resta saber se Lacerda conseguirá domar o serviço secreto. E se o presidente de fato fará as modificações necessárias no desenho institucional da Abin, como tirar a agência do campo interno para deixá-la voltada exclusivamente para o campo externo, o que demandaria mudanças na legislação.

Se a Abin ignora os erros do passado e não consegue conter as insatisfações internas do presente, que será do futuro? A depender da agência, uma história com final feliz. Detalhe: com Thiago Lacerda no papel de galã e Sheila Mello, a ex-loura do Tchan, no lugar da mocinha.

Thiago Lacerda vive o homem que veio da Abin

Recentemente, na sua enésima tentativa de melhorar a imagem, a Abin resolveu investir no cinema, apoiando a produção de Segurança Nacional, longa-metragem do cineasta Roberto Carminatti ainda não finalizado. O roteiro do filme é um suspiro na vida dura que o serviço secreto tem levado nos últimos anos. Em vez de críticas internas, críticas externas e falta de autocrítica, a Abin irá aparecer muito bem na fita. Em Segurança Nacional, o presidente da República (Milton Gonçalves) aciona a agência para desbaratar uma rede internacional de narcotráfico que ameaça a segurança do país. Um dos melhores agentes da corporação (Thiago Lacerda) sai então a campo para investigar o caso, mas é pego no contrapé quando os bandidos seqüestram sua namorada (Sheila Mello) e ameaçam detonar ataques em diversos pontos do país. O mocinho então tem de salvar o país e a namorada ao mesmo tempo (original, não?). Ah, claro, não faltam carros em alta velocidade, jatos cruzando o céu azul anil de Brasília, bombas e socos, muitos socos.

Carminatti contou com a consultoria do serviço secreto e pôde filmar nas dependências da Abin, uma área gigantesca no Setor Policial Sul, em Brasília. Para compor seu personagem, Thiago Lacerda recebeu dicas de agentes secretos. Agora é esperar pelo resultado.

Conseguirá Thiago Lacerda salvar Sheila Mello e vencer os vilões? E o delegado Paulo Lacerda? Terá ele forças para domar os rebeldes da agência e colocar o bonde nos trilhos? Lula sairá bem desse enrosco? Saiba de tudo nos próximos capítulos da novela da Abin.

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“Olho por Olho” e “O Operador” agora em e-book

Para aqueles que cobram a conversão de meus livros no formato e-book, finalmente uma boa notícia. Olho por Olho e O Operador já estão à venda nas livrarias digitais.

Ambos estão sendo oferecidos no formato ePub, o mais aceito nos variados aparelhos em que se pode ler livros digitais, dos eReaders (Nook, Sony Reader, Alpha e outros) aos Smartphones, do iPad ao iPhone, passando ainda pelos PCs. O ePub só não é aceito, por enquanto, no Kindle, que exige o formato Mobi, exclusivo da Amazon.  Mas negociações estão em curso e imagina-se que no meio do ano haja um acordo.

A Editora Record está trabalhando para converter meus outros livros (Boa Ventura!, Ministério do Silêncio e Morcegos Negros) em e-book. Assim que tiver uma novidade, aviso.

As versões e-book de Olho por Olho e O Operador podem ser baixadas nas seguintes livrarias virtuais: Cultura, Submarino/TheCopia, Livraria Curitiba e Livraria Abril, entre outras.

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[ARQUIVO DE REPÓRTER – 1] O livro secreto do Exército

Na inauguração da série Arquivo de repórter, a primeira matéria do conjunto que me deu o Prêmio Esso de Reportagem de 2007: O livro secreto do Exército.

É uma história incrível. Em 1998, quando fazia a pesquisa do meu segundo livro, Ministério do Silêncio, tomei conhecimento da existência deste importante documento secreto do Exército, que continha a até então inédita versão da força terrestre sobre a luta armada. Na época, tentei obtê-lo mas não consegui. Não era tarefa fácil: havia apenas 15 cópias que circulavam de mão em mão num círculo fechadíssimo de militares e civis de extrema direita.

Ministério do Silêncio foi lançado, em 2005. Nele, fiz apenas uma vaga menção ao Livro secreto do Exército.

Nos anos seguintes, continuei a perseguir o documento. A cada tentativa, novo fracasso.

Em 2007,  ao visitar uma fonte da área militar, ele me levou até a biblioteca de sua casa e começou a mostrar seu acervo. Na estante, estava o Livro secreto do Exército, encadernado artesanalmente. Soube então que minha fonte era um dos 15 guardiões do documento. Depois de alguma insistência, a fonte aceitou emprestar o documento.

Depois de 19 anos sendo mantido em sigilo, finalmente o Livro secreto do Exército seria tornado público.

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Livro secreto do Exército é revelado

Lucas Figueiredo, para o Estado de Minas e Correio Braziliense (15/4/2007)

O mistério que dura duas décadas chega ao fim. Há 19 anos, uma dúzia de oficiais da reserva esconde uma espécie de “santo graal” da linha-dura das Forças Armadas: um livro produzido pelo serviço secreto do Exército, que conta o que seria “a verdade” sobre a luta armada promovida por organizações de esquerda, entre 1967 e 1974. A obra nunca foi publicada e até mesmo seu título foi mantido em sigilo. Alguns poucos exemplares artesanais passaram de mão em mão, num círculo fechado. Apenas 40 páginas da obra (menos de 4% do total) circulam livremente pela Internet, postadas no site do grupo Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), que reúne militares e civis de extrema direita.

A reportagem do Correio/Estado de Minas obteve uma cópia do megadocumento, que tem 966 páginas divididas em dois tomos. A obra tem uma enorme importância histórica. Ela comprova, por exemplo, que o Exército possui informações sobre mortos e desaparecidos políticos que oficialmente nega ter (leia reportagem às páginas 3 e 4). Contém ainda mentiras, manipulações, mas também verdades incômodas, tanto para as Forças Armadas quanto para organizações de esquerda.

A obra começou a ser feita em 1986 como forma de responder às acusações contidas no livro Brasil: Nunca Mais, lançado no ano anterior, pela Arquidiocese de São Paulo, para denunciar a tortura e o assassinato de presos políticos na ditadura militar (1964-1985). Durante dois anos, por ordem direta do então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, cerca de 30 oficiais do Centro de Informações do Exército (CIE) — o serviço secreto da Força — trabalharam de forma sigilosa no chamado Projeto Orvil (orvil é a palavra livro ao contrário). Quando o livro ficou pronto, em 1988, foi batizado com o título de As tentativas de tomada do poder. Na época, porém, Leônidas desistiu de publicar a obra, que, rebatizada como Livro negro do terrorismo no Brasil, acabou se tornando uma relíquia militar.

Os dois tomos do livro secreto

Ao descrever o dia-a-dia de dezenas de organizações de esquerda, o livro cita mais de 1.700 pessoas, muitas delas ainda em atividade, como o ministro Franklin Martins (Comunicação Social), o ex-ministro José Dirceu, o governador José Serra (São Paulo) e o cantor e compositor Chico Buarque. Os dados, como é dito na apresentação do livro, foram retirados de documentos dos arquivos secretos militares.

Quatro fontes distintas comprovam que é autêntica a cópia obtida pelo Correio/Estado de Minas:

1) Trechos do livro foram copiados de documentos secretos do próprio Exército. Um caso concreto: nas páginas 721 e 722, está escrito: “A localidade de Santa Cruz, por exemplo, dista 600 km da sede do município, em Conceição do Araguaia, e a única ligação existente entre elas é o rio, demorando a viagem entre uma localidade e outra uma média de 5 dias”. Texto praticamente idêntico aparece em documento do Exército de 30 de outubro de 1972, classificado como secreto: “(…) A localidade de Santa Cruz dista 600 km da sede do município em Conceição do Araguaia e a viagem pelo rio, único meio de ligação, demora da ordem (sic) de 5 dias”.

2) Outros trechos do livro — como o relato do seqüestro do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, em 1970 — são cópias ou adaptações de textos publicados no site do grupo do Ternuma (www.ternuma.com.br), guardião da obra.

3) Consultadas pelo Correio/Estado de Minas, pessoas citadas no livro — entre elas Cid Queiroz Benjamim e Maurício Paiva, que participaram da luta armada — apontam erros e manipulações na obra, mas confirmam a veracidade de inúmeros detalhes, que ainda não são de conhecimento público.

4) Um oficial do Exército que possui um exemplar do livro confirmou que a cópia em poder da reportagem é autêntica.

Durante dois meses, o Correio/Estado de Minas confrontou o conteúdo do livro secreto do Exército com outras 12 obras de referência histórica e com dezenas de documentos das Forças Armadas. Também entrevistou 32 pessoas envolvidas direta ou indiretamente com os fatos narrados. O resultado do trabalho começa a ser publicado a partir de hoje numa série de reportagens especiais. O Livro negro do terrorismo no Brasil agora faz parte da história.

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O relato inédito sobre 23 mortos

Há mais de 30 anos o Exército nega ter informações sobre as condições em que morreram e/ou desapareceram centenas de pessoas ligadas a organizações de esquerda durante a ditadura militar (1964-1985). Em pelo menos 23 casos, contudo, é falsa a versão de que do Exército nada sabe. A prova está no livro secreto produzido pela Força entre 1986 e 1988. A obra do Exército desmente o próprio Exército ao relatar o destino de 16 guerrilheiros do PCdoB na região do Araguaia (Pará) e de outros sete militantes — três do Movimento de Libertação Popular (Molipo), três da Vanguarda Popular Revolucionário (VPR) e um da Ação Libertadora Nacional (ALN) — em diversos pontos do país e até o exterior.

João Carlos Haas Sobrinho (esq.) pouco antes de se juntar à Guerrilha do Araguaia

Os relatos contêm informações corretas e falsas. O Exército omitiu, por exemplo, o dado de que vários foram mortos quando se encontravam presos. Mas, quando se ateve a colocar no papel informações verídicas, chegou a dar detalhes. É o que acontece, por exemplo, no relato da morte de seis guerrilheiros no Araguaia (Ciro Flávio Salasar de Oliveira, Manoel José Nurchis, João Carlos Haas Sobrinho, Francisco Manoel Chaves, José Toledo de Oliveira e Antônio Carlos Monteiro Texeira). Ao descrever os últimos momentos dos seis guerrilheiros, o livro informa a quais batalhões pertenciam os militares que os mataram (6º e 10º Batalhão de Caça).

No livro, o Exército também narra a prisão de Boarnerges de Souza Massa (Molipo) e Kleber Lemos da Silva (PCdoB), cujos corpos nunca foram encontrados. O fato reforça o indício de que ambos foram assassinados quando se encontravam presos. O caso de Boanerges é ainda mais revelador. Sabia-se apenas que ele treinara guerrilha em Cuba e que desaparecera ao voltar clandestino ao Brasil em 1971. Desconhecia-se, porém, se tinha sido preso, se morrera em combate ou se simplesmente deserdara. Sabe-se agora, de acordo com a página 607 do livro secreto do Exército, que naquele ano ele “foi preso em Pindorama, em Goiás, utilizando nome falso”, e que passou por interrogatórios.

Outro trecho revelador do livro refere-se a Wânio José de Mattos, integrante da VPR que desapareceu no Chile em setembro de 1973, após o golpe militar que depôs o presidente Salvador Allende. Só em 1992, quando os arquivos chilenos foram abertos, a família foi informada pelas autoridades daquele país que, por falta de atendimento médico, Wânio morrera de peritonite aguda no Estádio Nacional, onde se encontrava preso. Contudo, pelo menos quatro anos antes da abertura dos arquivos chilenos, o Exército brasileiro já tinha conhecimento da versão, como mostra a página 788 do livro secreto. O trecho em que se lê “Wânio José de Mattos morreu no Chile, em 1973, com `peritonite´”, é mais uma prova de que, a partir do início da década de 1970, as ditaduras latino-americanas atuavam em estreita sintonia na guerra suja que travavam sobre seus opositores, parceria que ficou conhecida com o nome de Operação Condor.

Das 23 mortes relatadas no livro secreto do Exército e que ainda não tinham sido assumidas oficialmente pela Força, 22 corpos nunca foram encontrados. Se o Exército tem uma versão para essas 22 mortes, é presumível que tenha informações do que foi feito com os corpos.

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Cronologia do Projeto Orvil

1985

O então presidente José Sarney

José Sarney toma posse na Presidência, pondo fim a 21 anos de ditadura militar. No mesmo ano, a Arquidiocese de São Paulo lança o livro Brasil: nunca mais, com relatos de tortura e assassinato de presos políticos ocorridos durante a ditadura.

1986
Para responder ao Brasil: nunca mais, o ministro Leônidas Pires (Exército) manda o serviço secreto da Força produzir um livro com a versão dos militares para a luta armada. Inicia-se assim o Projeto Orvil (a palavra livro ao contrário).

1988
O livro do Exército fica pronto e é batizado com o título As tentativas de tomada do poder. Leônidas (foto), contudo, volta atrás e decide não publicá-lo. O documento então passa a circular entre militares da reserva rebatizado de Livro negro do terrorismo no Brasil.

2000
Integrantes do grupo de extrema direita Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), que reúne militares e civis, têm acesso ao livro e colocam na internet cerca de 40 páginas da obra. Não informam, porém, a origem dos textos.

2007
O Correio/Estado de Minas obtém uma cópia do livro. Com 966 páginas, o documento cita mais de 1,7 mil pessoas ligadas a organizações de esquerda, muitas delas ainda em atividade. A obra comprova que o Exército esconde informações sobre desaparecidos.

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Suzana Lisboa

Processos podem ser reabertos

As informações contidas no livro secreto do Exército podem provocar a revisão de casos já apreciados pela Comissão Especial que julga a responsabilidade do Estado na morte e desaparecimento de ativistas políticos. A opinião é de Suzana Lisboa, ex-membro da Comissão Especial e integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.

Ela cita o caso de Wânio José de Mattos, que, segundo o livro do Exército, morreu de peritonite no Chile, em 1973, quando se encontrava preso no Estádio Nacional. A mesma versão só foi tornada pública pelas autoridades chilenas em 1992, ou seja, quatro anos após a conclusão do livro secreto do Exército. “A Comissão Especial negou a indenização no caso de Wânio por considerar que o Estado brasileiro não tinha relação com a morte. Pelo que revela o livro do Exército, no entanto, vê-se agora que essa relação existia”, afirma Suzana.

Para ela, o Ministério Público deve inquirir militares que participaram da elaboração do livro, a começar pelo ex-ministro Leônidas Pires Gonçalves, a fim de que eles esclareçam como a obra foi feita e como cópias dela chegaram às mãos de particulares. “A história do país foi roubada por uns poucos”, diz Suzana. “Sempre se soube que esse livro existia, mas ele nunca tinha sido manuseado fora do meio militar. É importante que o Exército responda algumas questões: Onde estão os documento que serviram de base para o livro? Quem colaborou na realização do livro? Quanto custou? Como foi parar nas mãos de terceiros?”

Conselheira da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos e presidente do grupo Tortura Nunca Mais da Bahia, Diva Soares de Santana também considera que o Exército deve explicações em relação ao livro secreto. “O livro foi feito com dinheiro público, por isso os militares têm a obrigação de abrir as informações referentes a ele”.

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Livro era uma arma, diz general

“Eu disse ao (José) Sarney: ‘Eu fiz esse livro. É uma arma que eu tenho na mão’.” Às vésperas de completar 86 anos, saudável e com a memória preservada, o general da reserva Leônidas Pires Gonçalves relembra, em entrevista ao Correio/Estado de Minas, o dia em que, na condição de ministro do Exército, se reuniu com o presidente da República para discutir o que fazer com a versão oficial dos militares para a luta armada que o serviço secreto do Exército acabara de concluir. “Falei para o Sarney que não ia publicar o livro. Para que criar um problema que não existe?”, recorda Leônidas. “Esse livro”, concluiu o general na conversa com o presidente, “fica como um documento, que nós (militares) podemos ter a necessidade (de divulgar) no futuro.” De acordo com Leônidas, Sarney concordou e ambos deram o caso por encerrado.

General Leônidas Pires Gonçalves

Quais seriam as “necessidades” a que se refere Leônidas? É o próprio general quem explica: atos de “revanchismo” contra as Forças Armadas por parte de “quem perdeu a guerra”. “Naquele tempo (em que o livro foi feito), não havia o que acontece agora, um revanchismo sem propósito”, afirma ele. “No meu período como ministro (1985-90), não houve nenhum problema dessa natureza, essas ‘mães não-sei-do-quê’, (grupos do tipo) Tortura: nunca mais.”

Leônidas confirma que partiu dele a ordem para fazer o livro. Diz, porém, que não ficou com nenhum exemplar. “O livro foi feito pelo CIE (Centro de Informações do Exército, serviço secreto da Força) com base nos documentos que o órgão dispunha”, afirma. O general é categórico ao comentar a suposta destruição de documentos do CIE, que, segundo vem argumentando o Exército nos últimos anos, impediria a divulgação de informações referentes ao combate às guerrilhas urbana e rural nas décadas de 1960 e 1970: “Foram queimados coisa nenhuma”.

Na opinião de Leônidas, o Exército não tinha a obrigação de mostrar o “livro negro” a ninguém, já que a obra não foi publicada. “Isso é passado. Vamos olhar para frente”, sugeriu. O general critica os guerrilheiros do Araguaia — “A pergunta é: o que eles estavam fazendo lá? Fazendo um enclave, que é uma coisa lesa-pátria. O resto é conversa fiada” —, critica antigos companheiros de desaparecidos políticos — “Nós cuidamos dos nossos mortos. Eles deviam ter cuidado dos mortos deles” — e critica também os familiares — “Por que não perguntam o que seus filhos estavam fazendo lá? Por que não perguntam se mereciam ou não mereciam, na luta, serem mortos?”

Ainda em relação ao Araguaia, Leônidas chama de “guerra” o enfrentamento que ocorreu entre as Forças Armadas e os guerrilheiros do PCdoB. “O que resulta de guerra? Morte. Essas coisas são conseqüências muito naturais. Eles (os grupos de esquerda que participaram da luta armada) perderam a guerra e agora querem ganhar no tapetão”, afirma. De acordo com ele, o número de ativistas políticos de esquerda mortos durante o regime militar — cerca de 350 — foi até pequeno se comparado ao que aconteceu nas ditaduras do Chile, 3 mil mortos, e Argentina, 30 mil mortos. “Nossa vitória, do ponto de vista de (perda de) vidas humanas, foi muito sóbria.” Por fim, conclui: “Na guerra só há uma coisa bonita: a vitória. O resto não é bonito”.

Na quarta-feira, o Correio/Estado de Minas entrou em contato com o Ministério do Exército, que solicitou que perguntas referentes ao caso fossem enviadas por escrito, o que foi feito no mesmo dia. Até a noite de sexta-feira, porém, as respostas não haviam chegado. O senador e ex-presidente José Sarney informou, por meio de sua assessoria, que não se lembra do livro. O grupo Terrorismo nunca mais (Ternuma), uma espécie de guardião do Livro negro do terrorismo no Brasil, não respondeu questionário enviado pela reportagem. (LF)

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Famílias exigem corpos

Ouvidos pelo Correio/Estado de Minas, familiares de mortos e desaparecidos políticos citados no livro reivindicam a abertura dos documentos que embasaram a obra para que possam localizar os restos mortais de seus parentes:

Clélia de Melo (irmã de Alcery Maria Gomes da Silva):

Alcery Maria Gomes da Silva

“Minha irmã foi enterrada como indigente e, por isso, não soubemos de nada referente a ela durante muito tempo. Andamos em círculos durante anos para conseguir informações. Só fomos conseguir o atestado de óbito em 1995, mesmo assim depois de muito esforço. Se esse livro tivesse vindo a público, teríamos conseguido o atestado de óbito antes. Nunca conseguimos reaver o corpo de minha irmã. Machuca saber das coisas que estão escritas nesse livro, mas é sempre bom saber um pouquinho mais. A verdade precisa aparecer”

Baltazar Oliveira (irmão de Antônio dos Três Reis Oliveira):

Antônio dos Três Reis Oliveira

“Na década de 1970, minha família fez contatos com o Exército para saber o que tinha acontecido com meu irmão, mas eles negaram ter qualquer informação. Nunca tivemos uma posição oficial em relação à morte de meu irmão. O Exército escondeu durante todo esse tempo que tinha as informações que agora aparecem no livro. O Exército sabe onde estão os restos mortais do meu irmão. É importante que esse livro venha à tona. É preciso acabar com essa história de desaparecidos políticos no Brasil. O que queremos é dar um sepultamento digno para nossos parentes”

Joelson Crispim

Olga Crispim Lobo Bardawil (irmã de Joelson Crispim):
“Meu irmão tinha 22 anos quando morreu, e minha família ficou marcada por esse acontecimento pelo resto da vida. Ficou uma sombra nas nossas vidas. Em relação ao livro, deve vir a público toda informação que por direito é pública. Se o livro foi baseado em documentos, como parece ter sido, onde estão eles? Devem estar guardados em arquivos. A única resposta que eu quero saber é onde eles enterraram meu irmão. Está na hora de as famílias dos desaparecidos políticos poderem botar um ponto final nesse luto. Nós temos esse direito”

Criméia Alice Schmidt de Almeida (viúva de André Grabois):

André Grabois

“Está claro que esse livro foi feito com base em documentos. Ninguém guarda de memória tantas informações. Esse livro foi produzido pelo serviço público, por ordem do serviço público, mas ficou com particulares, o que é um absurdo. Ele deveria ter sido publicado. O governo não pode produzir livros secretos. Chega de coisas secretas”

Sônia Haas (irmã de João Carlos Haas Sobrinho):
“Se esse livro traz novidades, informações novas às quais nunca tivemos acesso, por que não fomos informados? Por que não temos acesso a ele? Esse livro tem de ser um instrumento de pesquisa para nós, tem de ser socializado. Apesar do desgaste pelo qual passamos todos esses anos na busca dos restos mortais de meu irmão, notícias como essa sempre despertam uma fagulha de esperança de que um dia essa busca terminará. A localização dos restos mortais de nossos parentes é um compromisso social, de justiça, de história. Temos direito a isso”

Marida Toledo de Oliveira (irmã de José Toledo de Oliveira):

José Toledo de Oliveira

“O Exército tem de se manifestar. Onde eles pegaram as informações que estão no livro? Eles agora têm de abrir os documentos em que o livro se baseou. O arquivo ainda deve existir”.

Francisco José de Oliveira

Nella Oliveira Menin (irmã de Francisco José de Oliveira):
“Não obtive uma versão da morte do meu irmão por parte do Exército. Nunca falaram nada. O governo Lula falou que ia liberar os arquivos, mas até agora nada”

Helenalda de Souza (irmã de Helenira Resende de Souza):

Helenira Resende de Souza

“De acordo com os relatos que ouvi, minha irmã foi torturada antes de ser morta. No livro não está escrito isso, mas, se o Exército assume que ela foi morta, certamente sabe também como isso aconteceu. Os militares sempre disseram que não tinham informação sobre minha irmã, mas o livro prova que eles mentiram. A notícia de que esse livro existe reforça a necessidade de o Exército abrir seus arquivos secretos”

Boanerges de Souza Massa

Cyro Massa (irmão de Boanerges de Souza Massa):
“Na época em que Boanerges desapareceu, minha família não foi informada da sua prisão. É público que, na prisão, utilizava-se da tortura para que os presos contassem o que sabiam. O que eu quero saber é onde está o corpo do meu irmão. Essa informação vai ter de sair dos arquivos”

Maria de Lourdes Oliveira (sobrinha de Ciro Flávio Salazar de Oliveira)

Ciro Flávio Salazar de Oliveira

“Há várias versões para a morte do meu tio. Não sabemos direito o que aconteceu. Deve haver documentos guardados que esclareçam isso. É uma vergonha. As pessoas têm o direito de enterrar seus mortos. Muitos pais já faleceram sem saber o que tinha acontecido com seus filhos. É um ponto importante da nossa história que precisa ser revelado”

Kleber Lemos da Silva

Norival dos Santos Silva (irmão de Kleber Lemos da Silva):
“É bom que tudo isso venha a público”

Maristella Nurchis (irmã de Manoel José Nurchis):
“A descrição da morte de meu irmão que está no livro confere com os relatos que escutei. Agora o Exército precisa se manifestar”.

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Aos agentes secretos: se beber, não fale

No próximo dia 7, numa casa de festas do Setor Park Way, em Brasília, acontece o tradicional jantar dançante de confraternização de final de ano dos servidores da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) e do GSI (Gabinete de Segurança Institucional). Aos agentes secretos, que contribuirão com R$ 100, solicita-se o traje passeio.

O blog aproveita a ocasião, sempre delicada, e reproduz um aviso bem humorado, porém pertinente, feito em 1976 pelo extinto SNI (Serviço Nacional de Informações) aos seus agentes, por ocasião das festas de final de ano. O aviso, carinhosamente chamado de Fórmula “S” para cocktail, foi divulgado na Coletânea L (publicação interna do SNI – secreta, obviamente) de dezembro daquele ano, juntamente com um calendário de 1977. (Em 2005, tive a felicidade de trazer essa pérola a público no meu livro Ministério do Silêncio.)

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Afinal, o que é jornalismo investigativo?

O repórter Luiz Gustavo Pacete, da revista Imprensa, fez uma longa entrevista comigo na semana passada sobre jornalismo. Conversamos sobre livros-reportagem, blog e o chamado “jornalismo investigativo”, um termo do qual não gosto e que, na minha opinião, é usado para embalar boas reportagens e também muita picaretagem.
A entrevista sairá no próximo número da Imprensa, mas uma palhinha já está na internet, no Portal Imprensa (veja reprodução abaixo).
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“Tem jornalista investigativo que acha que é juiz e delegado. É um picareta”, critica repórter
Luiz Gustavo Pacete, da revista Imprensa, enviado especial a Belo Horizonte
O jornalista e escritor mineiro Lucas Figueiredo esteve entre os quinze jornalistas brasileiros mais premiados durante os anos de 1995 e 2010. Ganhou os prêmios Esso (2007, 2005 e 2004), Jabuti (2010), Vladimir Herzog (2009 e 2005), Imprensa Embratel (2005) e Folha (1997). Formado na PUC Minas, ele diz que começou o jornalismo com o “pé no barro”. “Eu trabalhava em um jornal comunitário que tratava de temas da periferia. Cobria o que ninguém queria cobrir”, lembra.
Em 1994, Figueiredo foi para Brasília trabalhar para a Folha de S.Paulo. Ficou na capital até 2001 quando mudou para a sede do jornal em São Paulo. Em 2000, sem nenhuma pretensão comercial lançou seu primeiro livro Morcegos Negros pela editora Record. A obra foi fruto de apurações anteriores sobre escândalos e corrupção no governo Collor. “Fez um sucesso que nem eu e a editora esperava. Isso acabou me rendendo uma grana e permitiu que saísse da redação para escrever”, lembra.

O jornalista destaca que essa é sua dinâmica, alternando períodos em que escreve e momentos em que se dedica à redação e reportagens especiais. Após o sucesso do primeiro livro, Figueiredo seguiu produzindo. Escreveu, em 2005, o Ministério do Silêncio; em 2006, o O Operador; Olho por Olho em 2009 e, neste ano, o Boa Ventura!, todos publicados pela Record.
Figueiredo recebeu o Portal IMPRENSA em seu apartamento na capital mineira. Sem nenhum tipo de pudor falou sobre o que lhe incomoda no termo “jornalismo investigativo”, o que para ele é uma verdadeira “picaretagem”. Outra coisa que deixa o jornalista nervoso é o fato de muitos repórteres que recebem tal nomenclatura se acharem acima do bem e do mal. “Um perigo já que a pessoa começa a misturar as coisas, vai se envolvendo e depois acha que é juiz, delegado e promotor, uma verdadeira picaretagem”, diz.
Portal IMPRENSA – Seu primeiro livro [Morcegos Negros] foi feito para aproveitar uma apuração?
Lucas Figueiredo – Eram histórias que eu já tinha apurado. Aquilo era um peso que eu precisava tirar das costas. Tinha crime, sangue, perseguição e muita bandidagem. Passei anos diante desta história e precisava tirar de dentro de mim, exorcizar esse negócio e botar na estante. Decidi fazer o livro, falei com a editora Record e ela deixou clara a realidade sobre o mercado – não muito animadora – mesmo assim publiquei e o livro ficou por várias semanas na lista dos mais vendidos. Vendeu muito e me deu uma grana. Eu já tinha me apaixonado pelo livro-reportagem – em minha opinião a melhor plataforma para se fazer reportagem – e quando vi aquele dinheiro decidi me dedicar ao livro; é o que tenho feito. Hoje já consigo passar períodos fora da redação me dedicando exclusivamente aos livros, mas eventualmente volto.

IMPRENSA – Neste momento você está se dedicando a um novo trabalho?
Figueiredo – Estou trabalhando em um livro que sai o ano que vem, ele vai ser no formato reportagem.
IMPRENSA – Qual o assunto?
Figueiredo – Infelizmente ainda não posso contar.
IMPRENSA – E reportagem especial. Para quem você está trabalhando?
Figueiredo – Não tenho nada muito fixo. Até agora eu estava trabalhando com a GQ, que acabou de chegar ao Brasil. Eles possuem um miolo que é para a grande reportagem. É uma revista masculina super sofisticada, mas você tem dez páginas ali que falam da vida real. Eu tinha um contrato com eles que era uma reportagem de quatro em quatro meses, uma grande reportagem, mais uma coluna mensal de política, e o meu blog que era hospedado no site da revista. Só que isso estava me consumindo demais, e os caras queriam reportagens que fossem matadoras, e isso dá trabalho. Querem coisas robustas, matérias de trinta mil toques… Você não vê hoje na imprensa, um texto deste porte, com exceção da Rolling Stone, da Piauí e da GQ
IMPRENSA – Qual o custo de fazer este tipo de jornalismo?
Figueiredo – A questão é a seguinte: todo mundo quer ir para o céu, mas ninguém quer pagar. Todo mundo fala que curte a grande reportagem, o jornalismo investigativo, mas não valorizam. Mas o que é jornalismo investigativo? São pessoas com poderes paranormais? Eu não gosto deste termo, acho isso uma bobagem, acho que isso virou uma enganação. Parece que o cara tem poderes e descobre coisas, é meio um astro. E na verdade não é isso, este tipo de jornalismo é sola de sapato e grana. Igual fez a Piaui: acompanhar o Jobim por um mês. Isso é pauta, pesquisa pra cacete. É o cara antes de ir para a rua ler três, quatro livros, e na redação isso é impensável. É o cara passar dois meses em cima de uma história pesquisando. E tudo isso custa muito; você precisa ter alguém qualificado, preparado, alguém mais sênior, mas é basicamente dinheiro e tempo.

IMPRENSA – E as redações não têm nem tempo e nem dinheiro, concorda?
Figueiredo – Todo mundo quer, acha bonito, fala “nossa é jornalismo investigativo e tal”. Muitas vezes pedem a reportagem em quatro dias. Poxa, em quatro dias? Eu não tenho poderes sobrenaturais, isso não é jornalismo investigativo. Então, reforço que não gosto do termo jornalismo investigativo, o que eu vejo é a velha e boa reportagem. Você pega a New Yorker, o cara publica uma entrevista na revista e depois pega e transforma em um livro gigante com tudo o que apurou e esse material vira Best-seller.
IMPRENSA – Você não gosta do termo por que acredita que o jornalismo é investigativo por natureza?
Figueiredo – Na verdade, não. Você tem linguagens diferentes, tem a cobertura diária que demanda alguém dedicado para dar informações mais rápidas. Alguém com o gravador na cola do ministro Mantega, como eu já fiz milhares de vezes. Você precisa de alguém na bolsa para ver como fechou o pregão. Agora você tem outra coisa que é a grande reportagem [enfatiza] que é aquela que tenta identificar onde vai estourar a próxima sacanagem no governo. Ver onde que estão “mamando” e roubando. Para isso, você precisa entrar nos bastidores, demanda entrar no subterrâneo e o que você vai encontrar no subterrâneo só vai descobrir lá. E hoje cada dia menos as redações têm essa disposição.

IMPRENSA – Principalmente por questões financeiras…
Figueiredo – As redações empobreceram, elas foram enxugando, os veículos estão em uma situação delicada há décadas. Então, a realidade é que cada dia você tem menos gente produzindo e menos gente sênior. Quando eu entrei na Folha, em 1994, era uma coisa de louco, a redação era habitada por estrelas, tinha “nego” assim que fazia matérias de um mês, cinco meses. Hoje isso é quase impossível, porque se você quer fazer uma coisa bacana, não adianta, tem que gastar. Cada dia a cobertura aumenta, o número de pessoas diminui e você tem menos pessoas com experiência. E aí o que eu vejo de ruim é que quando essas redações dedicam um tempinho a mais para uma reportagem chamam aquilo de jornalismo investigativo, mesmo sendo uma pauta que veio da direção, se aquilo é um dossiê pronto, não importa, botam lá “exclusivo, jornalismo investigativo”. Esse termo está embalando um monte de picaretagem. Ai você tem uma coisa que eu acho grave: tem muito jornalista acreditando que tem poderes sobrenaturais, que se apresenta dizendo que é o cara do jornalismo investigativo, ai ele começa se achar, começa confundir a relação de poder, começa a achar que é promotor, que é delegado, que é juiz… Aí acabou.
IMPRENSA – Acaba ficando refém das relações que criou…
Figueiredo – Isso mesmo. Ele é investigativo e judiciário, aí o cara acaba fazendo o pacote inteiro. O problema é que a imprensa está dando corda para isso. Por isso que eu não gosto do termo [jornalismo investigativo], porque embala muita picaretagem. É claro, tem coisa séria, mas também muita picaretagem. Eu gosto de chamar de velha e boa reportagem. O que acontece hoje com essa diversidade de meios, internet e mudança do mercado é que você tem espaço para pessoas trabalharem como autônomas. Hoje, por exemplo, eu escolho para quem vou escrever. 
IMPRENSA – Mas essa escolha, além da questão financeira também está baseada no melhor fluxo da informação?
Figueiredo – Claro, eu pego uma boa pauta e posso falar assim: “essa pauta é a cara da Carta Capital“, ai eu ofereço; se não interessa, ligo para a Rolling Stone: ‘te interessa?’, não; aí ligo para outro. Claro que é muito mais confortável ter o salário no final do mês, não ter esse salário te obriga a ter flexibilidade.
IMPRENSA – E no blog, que tipo de conteúdo você oferece?
Figueiredo – Lá no blog eu tento fazer o contrário do que fazem hoje na blogosfera. O que acontece é o seguinte: existe hoje uma bipolaridade tremenda, você vai ao blog do Reinaldo Azevedo e já sabe o que vai encontrar lá. Acabou aquela coisa de dizer “vamos pegar algo um pouco mais plural, com pontos de vista diferentes”. Coisas menos viciadas, acho que tem espaço para isso: poder aumentar os ângulos do debate. E eu acho que o leitor está precisando disso, algo que vá além do que o leitor vê no blog do Reinaldo e no do Paulo Henrique Amorim. 
IMPRENSA – O que representa uma associação como a Abraji para você?
Figueiredo – Eu gosto da Abraji, acho que tem gente muito séria lá. Muitos colegas meus, que passaram ou estão na Abraji. Acho que eles fazem um trabalho muito bom no sentido de oferecer uma sustentação para um tipo de jornalismo mais sensível, oferecem encontros e seminários, para oferecer boas coisas na área de capacitação. Acho legal existir um tipo de entidade como ela. O termo que eu não gosto; este termo [jornalismo investigativo] é uma picaretagem.
IMPRENSA – Então as empresas apostarão mais em caras independentes?
Figueiredo – Eu acho que as empresas não, elas não têm muito fôlego para apostar. Muitas vezes me ligam e dizem: “olha tem uma pauta aqui, uma história investigativa, te pagamos x com base na tabela”, eu digo “poxa amigo, você está querendo que eu vá lá e tire leite de pata?”. Então, sempre tem essa coisa da tabela, número de toques. Ai eu entro em uma história que eu não sei primeiro se vai dar certo; segundo, não sei se vai demorar; terceiro, eu não sei o que vou encontrar pela frente. Por exemplo, vou fazer uma matéria que envolve crime organizado, eu estou arriscando a minha vida. Agora todo mundo quer dar porrada, mas quer pagar uma miséria. Dizem que é jornalismo investigativo, mas estão pagando o mesmo que pagam para fazer uma matéria de agenda. As empresas não dão valor para aquilo que dizem ter valor. Não adianta querer fazer um negócio legal vai morrer numa grana. Você vê: a Piaui está morrendo numa grana. A própria Rolling Stone está fazendo isso. Vão chegar outras revistas… Está todo mundo de saco cheio de commoditie. 
IMPRENSA – Demanda existe?
Figueiredo – Por um lado existe, mas é o seguinte: você não está gastando uma puta grana todo mês para fazer uma New Yorker. O Brasil não tem esse mercado ainda. Você pega as revistas, mas pode investir um pouco mais de grana e o leitor está buscando isso em outras plataformas, nos livros, na internet.  
IMPRENSA – Você vê tendência no mercado de livro-reportagem?
Figueiredo – Cada dia mais vejo um mercado promissor de não-ficção. E agora você está indo para outra vertente que é a de livros com reportagens históricas. Outra coisa é que você não tem uma cultura de leitura de história por parte do leitor jovem. Muita gente diz “por que tem tanto jornalista escrevendo livro agora”?. Isso não é verdade: os jornalistas sempre escreveram livros de história, desde Euclides da Cunha, que era reportagem de Canudos, mas você vai fazer um registro com um olhar histórico até Gabeira, Zuenir Ventura, Fernando Morais. Eu fui ler pela primeira vez sobre Getulio Vargas no livro de um jornalista. Sempre houve um vácuo para contar a história do Brasil dentro de um produto acessível.

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Abin: a necessária ruptura

Em meu livro Ministério do Silêncio – A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula (1927-2005), conto a história de um militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro) aprovado, na virada de 1994 para 1995, no primeiro concurso público para agente do serviço secreto – que na época respondia pela sigla SSI (Subsecretaria de Inteligência), hoje Abin (Agência Brasileira de Inteligência). Escrevi:

“No caso do tal sujeito de Recife ligado ao PCB, ele foi encostado numa função burocrática de um setor mais burocrático ainda. Considerado suspeito de ser um espião a serviço dos comunistas, nunca teve acesso a documentos e missões importantes. Assim, tecnicamente, a SSI cumpriu sua palavra de não fazer triagem ideológica dos candidatos. Mas também não deixou de tomar suas precauções”.

Descubro agora, seis anos depois, a identidade daquele personagem sem nome. Ele se chama Roberto Numeriano, um profícuo doutor em ciências políticas, especialista em…. serviços de inteligências.

Como vocês verão no artigo abaixo, escrito por Numeriano para o blog, ele tem muito a contribuir para a reformulação do serviço secreto brasileiro. Com a palavra, Roberto Numeriano.

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Agência Brasileira de Inteligência: a necessária ruptura

Roberto Numeriano*

A decisão do senador Fernando Collor, presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE), em abrir uma discussão parlamentar, acadêmica e social sobre a atividade de Inteligência poderá significar, neste início de legislatura e de governo, a possibilidade de conhecer, com isenção e sem preconceitos, uma área do poder estatal sobre a qual pairam críticas quanto à efetividade do seu trabalho, bem como dúvidas a respeito dos meios e métodos de controle e fiscalização dos seus agentes e órgãos.

Esta discussão é fundamental para iniciar a ruptura com legados político-institucionais que ainda bloqueiam a legitimação da Inteligência civil brasileira. Tais legados subsistem politicamente, com efeitos sobre: a) o grau de confiança inter-institucional (a Abin em relação a outros órgãos, a exemplo da Polícia Federal); b) a coesão e unidade de ação entre os órgãos da área para fazer cumprir as diretrizes de Inteligência (o Sistema Brasileiro de Inteligência não funciona sistemicamente); c) a credibilidade da sociedade civil no órgão (são constantes as críticas dos formadores de opinião sobre a necessidade de um serviço de Inteligência); d) a eficácia do trabalho operacional e de análise; e) a disposição dos quadros de Estado em demandar a agência como potencial formuladora estratégica na área de segurança e defesa; e f) a existência de conflitos internos. Sem dúvida, a Abin padece desses problemas em maior ou menor grau, com graves prejuízos no desempenho de sua missão constitucional.

A Abin, criada em 1999, na gestão de Fernando Henrique Cardoso, tem como missão institucional prover o Executivo federal de conhecimentos na forma de relatórios de Inteligência, para ajudá-lo, entre outras tarefas, na execução das políticas de segurança e defesa do Estado e da sociedade.

A agência brasileira ocupa-se do campo interno e externo. No campo interno, dedica-se a temas diversos, tais como o acompanhamento da criminalidade organizada e de movimentos sociais (a exemplo do MST). No campo externo, busca coletar, analisar e disseminar conhecimentos para prevenir a ação adversa de estrangeiros e/ou instituições contra alvos em território brasileiro, na forma de atos de sabotagem e terrorismo.

Mas a Abin sofre uma crise de identidade, efeito daqueles legados. Carece, em primeiro lugar, de legitimidade que somente a opinião pública, o Congresso Nacional, o mundo acadêmico e a comunidade de Inteligência podem conferir. Carece, também, de uma efetiva civilianização, dado que certas crenças, culturas e comportamentos permanecem inspiradas numa doutrina de corte militar, como nos tempos do Serviço Nacional de Informações (SNI).

A crise pode ser caracterizada como um impasse entre uma mentalidade típica de Inteligência como polícia política, e uma visão democrática da Inteligência sob um Estado de direito democrático. De fato, a Abin ainda vive sua transição político-institucional. Essa transição, internamente à agência, provocou o surgimento de grupos que disputam a hegemonia na instituição, todos em busca de um consenso que possa legitimá-los.

A crise de identidade requer uma resposta.  Mas, para compor uma agenda da Inteligência de Estado, é necessário uma ruptura institucional com aquelas crenças, mentalidades e costumes contaminados pelo espírito da Doutrina de Segurança Nacional. É preciso civilianizar a Abin, ou seja, torná-la, de fato e de direito, um órgão de Inteligência civil. Civilianizar a atividade significa a) tornar efetivos os mecanismos de controle e fiscalização, internos e externos; b) constitucionalizar a atividade mediante uma emenda que estabeleça as competências da atividade; c) renovar os quadros de direção; d) extinguir da agência (órgão civil) símbolos e práticas de natureza militar; e) expurgar da Doutrina de Inteligência os ecos / legados autoritários e, ao mesmo tempo, f) sair da tutela do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

A agenda requer um debate extenso e profundo, do qual não pode se furtar a sociedade. É pacífico que todos os Estados necessitam de serviços de Inteligência. Embora pareça um paradoxo, são justamente os Estados de democracia consolidada que precisam manter órgãos de prevenção e repressão aos crimes, em face de sua maior vulnerabilidade à ação adversa de grupos contrários ao Estado de direito. Para legitimar-se institucionalmente (debelando estigmas e preconceitos), a Abin, que tem uma missão fundamental e nobre na defesa estatal e da sociedade, precisa fazer a ruptura democrática diante dos velhos legados e impasses.

*Roberto Numeriano, Oficial de Inteligência da Abin, é mestre e doutor em Ciência Política (UFPE), além de membro do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas e da Criminalidade da Universidade Federal de Pernambuco (NICC / UFPE). Publicou o livro Serviços Secretos: A Sobrevivência dos Legados Autoritários.

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