Muitos me perguntam pela foto que ilustra o topo do blog. Boa época para falar sobre ela.
A imagem foi feita no Peru, em 1993, pela extraordinária repórter-fotográfica peruana Cecília Simpson. Corria então a metade do primeiro de três mandatos do presidente Alberto Fujimori. No ano anterior, ele sacudira o país com dois eventos: um autogolpe, com fechamento do Congresso, e a prisão do terrorista número um do país, Abimael Guszmán, líder do sanguinolento Sendero Luminoso.
Fujimori era o herói e o vilão do Peru.

Eu ao lado do capitão Renzo, do Exército peruano, no interior de Ayacucho, em 1993
Eu, trabalhando para a revista belga Défis Sud, e Cecília, para o jornal peruano El Comercio, viajávamos a Ayacucho para registrar um fenômeno social incrível: o retorno de famílias de trabalhadores rurais que haviam sido expulsas de suas terras pelo Sendero Luminoso 20 anos antes. Não era um retorno fácil. Por falta de segurança, a população ainda era obrigada a viver acampada em torno de uma esquálida base do Exército. De manhã, com uma chamada oral, os militares conferiam se todos ainda estavam lá. Em seguida, escoltados por soldados de fuzis nas mãos e olhos fixos nas montanhas, os camponeses seguiam até suas antigas propriedades. Passavam o dia a trabalhar na terra e podiam visitar suas casas abandonadas, algumas delas em ruínas. Mas, por falta de segurança, não podiam ainda ficar. Antes do fim da tarde, os camponeses retornavam ao acampamento, onde era feita nova chamada oral. Quando a noite chegava, o medo de um ataque surpresa rondava a cabeça de todos. No outro dia, tudo se repetia.
O temor de um ataque não era sem propósito. Não havia um camponês sequer com os quais convivi naqueles dias que não tivesse pelo menos um familiar sequestrado ou morto pelos terroristas de esquerda ou por grupos paramilitares de extrema direita ligados às Forças Armadas.
Foram muitos os que aconselharam a mim e a Cecília a não viajar pelo interior de Ayacucho. Na capital do Departamento (estado), também chamada Ayacucho, um militar nos mostrou fotos feitas pelo Exército pouco tempo antes: uma dezena de cabeças cortadas num campo de futebol da região. Terroristas do Sendero haviam invadido uma pequena vila rural, matado todos os homens e, depois, jogado futebol com as cabeças.
Antes de viajar ao interior, ainda na capital Ayacucho, tive a sorte de fazer minha primeira entrevista com o presidente Fujimori, que chegara de surpresa para uma visita. No dia seguinte, eu e Cecília partimos para ver como viviam los desplazados (na tradução literal, “os deslocados”). Nossos guias foram um jornalista local, Hugo, e seu segurança, um assassino profissional chamado El Gatito. De Ayacucho até a base do Exército, rodamos algo em torno de 150 quilômetros. Ao volante de seu velho Fusca, ia Hugo e ao seu lado o tenso El Gatito, com um revólver 38 na mão direita. No banco de trás, eu e Cecília.
Quando o Fusca atolou, pensamos: ferrou! (não foi exatamente essa a palavra). Nossa sorte foi que apareceu o capitão Renzo com seus homens. Depois de ouvir um sermão, fomos resgatados e levados à tal base esquálida do Exército, onde ficamos “hospedados” por alguns dias.
Numa das expedições diárias para acompanhar aquele bizarro cultivo da terra sob canos de fuzil, Cecília fez a foto que ilustra o blog. O barbudo com a câmera na mão sou eu; ao meu lado, o capitão Renzo. Ao fundo, os soldados a vigiar as montanhas.
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Sete anos mais tarde, retornei ao Peru para entrevistar Fujimori pela terceira vez. De madrugada, em Lima, um assessor do palácio presidencial telefonou para mim com um recado: eu deveria estar na porta do hotel às 5h da manhã para ser apanhado por um oficial do Exército que me levaria ao encontro de Fujimori. Eu viajaria com El Chino, mas, por uma norma da segurança, só saberia para onde quando estivesse dentro do avião presidencial.
O momento era bem diferente. O país fora “pacificado” por Fujimori – a golpes de tacape, bombas e muitos tiros de fuzil, é bem verdade. O terrorismo agonizava. Fujimori se preparava para disputar a re-reeleição, uma invenção bem ao estilo Fujimori.
Para se perpetrar no poder, ele fraudaria as eleições mais uma vez e usaria contra seus adversários todo o repertório sujo do serviço secreto – o temido SIN (Serviço de Inteligência Nacional), comandado pelo assassino e traficante (de armas e drogas) Vladimir Montesino.
Naquele ano, Fujimori foi re-reeleito – sob as bençãos do governo Fernando Henrique Cardoso, diga-se de passagem. Naquele ano também, em decorrência de uma série de escândalos, El Chino abandonou a Presidência e fugiu para o Japão.
Mas não falei ainda da minha viagem com Fujimori. Para minha surpresa e alegria, nosso destino era o interior de Ayacucho. Como mostra a foto abaixo, fazia muito frio e Fujimori usava um belo poncho. Eu, desprevenido, tremia o queixo.

O então presidente do Peru, Alberto Fujimori, e eu, no interior de Ayacucho, no ano 2000
Nossa comitiva viajou sob um pesado esquema de segurança. Mas, nesse quesito, o Peru do ano 2000 certamente era melhor que o de 1993. Salvo uma ou outra célula do Sendero Luminoso e do MRTA (Movimento Revolucionário Túpac Amaru), a região de Ayacucho, bem como todo o país, estava praticamente livre do terrorismo. Los desplazados já viviam em suas casas e não precisam mais plantar sob a vigilância de soldados.
Fujimori foi bom para o Peru.
Fujimori foi péssimo para o Peru.
Foi isso que o eu vi.
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