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O dia em que virei pássaro na Amazônia. E depois, ET

Primeiro ela sorriu. Depois...

As fotos de índios isolados da Amazônia divulgadas ontem pela Survival International (veja aqui) fizeram com que eu me lembrasse de uma experiência fantástica que tive: um encontro com yanomanis apartados da civilização.

Em 1997, quando trabalha na sucursal da Folha de S.Paulo em Brasília, fui escalado para uma viagem à Amazônia. A idéia era ver de perto como os militares pretendiam operar o Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia). No Estado do Amazonas, passei por Manaus, pela charmosa São Gabriel da Cachoeira e pela explosiva região de Tabatinga (fronteira com a Colômbia e o Peru). Depois de dez dias, com informações suficientes para escrever a reportagem, eu me preparava para voltar a Brasília quando surgiu uma bela oportunidade: acompanhar uma inspeção do Exército a uma remota região do país – um rincão de Roraima encravado na divisa com a Venezuela. Era uma área montanhosa, de selva fechada e dificílimo acesso. Para minha sorte, havia lugar no avião da FAB que conduziria os expedicionários.

Foi um voo incomum. Primeiro porque a aeronave, um modelo de carga do Bufalo (uma espécie de jipe dos céus), era um tubo oco no qual os eventuais passageiros tinham de viajar em cadeiras retráteis – na verdade, grossas tiras de material sintético entrelaçadas. E com um detalhe: como a prioridade era a carga, havia apenas duas fileiras de cadeiras, instaladas de costas para a janela, uma de frente para a outra. Ou seja, viajava-se de lado.

A primeira surpresa aconteceu ainda no ar. Pouco antes de pousar em Boa Vista, o piloto mandou um sargento me avisar que dois aviões Tucanos da FAB estavam se aproximando do Bufalo para nos escoltar. “O comandante quer saber se você gostaria de fazer fotos dos Tucanos”, perguntou o militar. Sim, é claro, respondi, já trocando a lente 50 mm da minha Minolta SRT-100 por uma teleobjetiva 70-210 mm. Os Tucanos vão aparecer na janela atrás de mim, eu dou um zoom e faço as fotos, pensei. Engano. Era muito melhor que isso! “Então prenda esse gancho no seu cinto e se arraste até a traseira do avião. O piloto vai abrir a porta traseira para que você possa fotografar os Tucanos”, disse o sargento. Obedeci às ordens meio assustado. Posicionei-me no fundo do Bufalo e fiquei esperando.

Imaginei que era apenas zelo do piloto a instrução para que eu me amarasse a uma tira que pendia do teto do Bufalo, uma espécie de cinto de segurança para carga. Só uma fresta da porta traseira vai se abrir, pensei. Qual o quê! Num movimento parecido ao de uma ponte levadiça, a porta do Bufalo foi descendo, descendo, descendo até abrir um buraco de mais de um metro no avião. Agora, eu estava praticamente no céu, segurando firme minha câmera, lutando contra o forte vento que balançava todo o meu corpo. Meu coração veio à boca! “Bom, eu estou amarrado”, disse para mim mesmo. “Deixa então eu fazer essas fotos.” Com bastante dificuldade, por causa do vento, apontei a câmera para a linha do horizonte e comecei a procurar os Tucanos no visor. Vi apenas um emaranhado de árvores parecendo um brócolis gigante. “Onde estão os Tucanos?”, gritei para o sargento que supervisionava minha aventura. O militar foi até a cabine do piloto, voltou e respondeu: “Olhe para o lado direito”. Virei o rosto e não acreditei no que vi.  Os Tucanos estavam a uns dez metros de distância; tão perto que eu podia ver o cockpit. Um dos pilotos deu um tchauzinho para mim; eu, ainda meio bobo, respondi.

Eu estava tão perto que não conseguia enquadrar nem mesmo um dos aviões inteiro com a lente zoom. Lutando contra o vento, troquei novamente a lente da câmera e, com a chamada “lente normal”, de 50 mm, comecei a disparar (veja fotos abaixo). Eu e os pilotos dos Tucanos iniciamos então uma troca de sinais, e logo os aviões estavam fazendo malabarismos sob meu comando. Tomei então coragem e me arrastei um pouco mais, colocando parte do dorso para fora do Bufalo.

Até hoje não encontro melhor jeito de descrever a experiência: eu me senti como um passarinho.

Ficamos algumas horas em Boa Vista e rumamos enfim para nosso destino, uma pequena aldeia yanomami próxima da fronteira com a Venezuela. No voo (desta vez com a porta traseira fechada, infelizmente), fui informado de que os índios que lá viviam não falavam português e, a exceção de um ou outro, nunca tinham saído da selva. Contatos com o homem branco se limitavam às esporádicas visitas de militares e técnicos da Funai.

O valente Bufalo pousou numa pequena pista de terra batida não muito distante da aldeia. Saltei do avião e logo fui cercado por índios de cabelo muito preto, cortado ao estilo cuia, alguns deles com varetas enfiadas na boca e no nariz. Todos eles, nus; quase todos, pintados.

De pássaro, eu me transformava agora num alienígena.

Lembro-me que crianças e adolescentes, absolutamente maravilhadas, ficaram puxando os pêlos do meu braço e passando as mãos no meu rosto, como se tivessem vendo um ser de outro planeta (o que, de certa forma, eu era). Uma índia já idosa se encantou com o tecido da minha camisa. Esfregava o algodão e dava gargalhadas deliciosas. Detalhe: minha impressão era que os índios não me viam como um ser vivo, mas como um boneco. A exceção foi uma jovem índia (não saberia arriscar sua idade) que me puxou pelo braço e me levou para um tour pela pequena aldeia, composta por cerca de quatro ocas. Encorajado pela gentileza da minha cicerone, arrisquei fazer uma foto da indiazinha (no alto do post). Ela sorriu matreira, depois ficou séria e, mirando abaixo da minha cintura, fez um gesto ameaçador. Percebi que se continuasse a fotografar poderia sair de lá capado.

Minha visita à aldeia deve ter durado duas horas. Voltamos para Boa Vista, de lá para Manaus e por fim Brasília.

Nada foi tão mágico antes ou depois daquela viagem.

Foto Lucas Figueiredo

Um dos Tucanos que escoltaram o Bufalo (foto Lucas Figueiredo)

Foto Lucas Figueiredo

Foto tirada com uma lente 50 mm (foto Lucas Figueiredo)

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JP, um jornal-herói, entra no 25º ano de vida (e batendo)

Jornal Pessoal, radar da Amazônia

Jornalista Lúcio Flávio Pinto

Ele é um jornalzinho feio (jornalzinho porque pequeno; feio porque feio mesmo). Tem 12 páginas – sem cor e sem fotos. Circula de quinze em quinze dias. É um herói, e por várias razões:

  • Nenhum outro veículo brasileiro é tão rigoroso com os preceitos jornalísticos;
  • Para garantir a independência de seu conteúdo, o jornal não aceita publicidade. Vive exclusivamente da venda avulsa (R$ 3 a edição);
  • Do PT ao DEM, de Lula a Serra, o jornal disseca as entranhas e retira as tripas – e mostra tudo a seu público, sem medo de chocar;
  • Fiscaliza com lupa o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Denuncia com vigor relações promíscuas entre capital & poder. Vigia a mídia;
  • Se uma autoridade, um empresário ou um jornalista mentiu, o jornal, quando tem provas, publica: “mentiu”. Se roubou, diz “roubou”. Simples assim;
  • Sua coragem não é exercida sob a proteção de multidões ou instituições do Sul Maravilha. Sua base fica na distante Belém; sua praça é a Amazônia dominada por feras que, com liberdade, agem acima da lei;
  • Como bate muito, o jornal apanha. Advogados de notório saber e jagunços de soco inglês já foram acionados para tentar calá-lo. Na Justiça, contam-se mais 30 processos e quatro condenações contra seu editor. Nada, porém, deteve o jornal. Em 2011, terá início o seu 25º ano de publicação.

Este é o Jornal Pessoal, uma teimosia de Lúcio Flávio Pinto.

Com admiradores (muitos) e colaboradores (alguns) espalhados pelo mundo, o JP é uma experiência solitária de um dos maiores jornalistas do Brasil. De 1966 a 1988, Lúcio Flávio passou por algumas das maiores e melhores redações do país, sempre com foco na Amazônia. Ganhou, entre outros, quatro prêmios Esso, o mais cobiçado do jornalismo nacional.

Em busca de um jornalismo extremado, em 1988, Lúcio Flávio abandonou a grande imprensa para se dedicar exclusivamente ao seu Jornal Pessoal. Desde então, a agenda amazônica do jornalista é acompanhada, no Brasil e no exterior, com vivo interesse – e aplausos.

Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do CPJ (Comittee for Jornalists Protection), de Nova York, pelas denúncias que faz em seu jornal e pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Entre uma edição e outra, Lúcio Flávio escreveu quinze livros, todos sobre a Amazônia.

Fora do Brasil, Lúcio Flávio é tratado com reverência. Um exemplo: o jornalista norte-americano Larry Rohter, ex-correspondente do New York Times no Brasil, registrou no seu livro (Deu no New York Times) que o JP foi o primeiro a detectar a importância da penetração chinesa na Amazônia, em 2001. No Brasil, contudo, as coisas não são fáceis para Lúcio Flávio e seu JP.

Além da imensa pressão que enfrenta por parte daqueles que querem calá-lo, Lúcio Flávio banca o jornal sozinho. Como não abre mão da independência, não aceita anúncios. Em 2008, abrindo uma nova frente para o JP, o jornalista começou a colocar ao alcance público, na internet, todo o arquivo do jornal (www.lucioflaviopinto.com.br). Como, nesse caso, além de não contar com receita de anúncios, ele não iria faturar com a venda direta aos leitores, Lúcio Flávio abriu uma conta bancária para receber doações. O dinheiro, no entanto, mal pingou, e Lúcio Flávio mais uma vez teve de assumir os gastos (sem reclamar, diga-se de passagem – Lúcio Flávio não faz o estilo vítima).

Assim, contrariando as tendências do mercado, o Jornal Pessoal caminha para completar um quarto de século. Que venham outros! Quando o JP bate, a gente gosta.

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