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O sucesso da Bienal do Livro de MG (apesar do teto…)

A Bienal do Livro de Minas de 2012 foi sensacional (noves fora o lamentável encerramento abrupto do evento, dois dias antes da data prevista, devido à inadmissível incompetência dos administradores do Expominas, que durante uma semana expuseram uma multidão sob um teto em risco de desabamento). Encontrei amigos escritores, como Zuenir Ventura, Mary Del Priore e Frei Betto, e fiz outros, como Alberto Villa, Luís Rufatto e Luís Giffoni.

Tive também a alegria de participar de uma edição especial do Imagem da Palavra (abaixo), um dos meus programas preferidos na Rede Minas.

Parabéns à Fagga, responsável pelo evento, e a Afonso Borges, curador do Café Literário. E que venha e Bienal 2013 (sob um teto sólido).

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Movidos a Moët & Chandon

Ontem, foram divulgados os vencedores do Prêmio Esso. Diferentemente de outros anos, não foi realizada a grande cerimônia de anúncio dos vencedores, que acontecia no velho e bom estilo Oscar (E o vencedor é…). Desta vez, uma nota oficial, seca e sem graça, tratou de anunciar os nomes dos ganhadores. Desconfio que a culpa seja dos jornalistas.

Havia algumas décadas, uma tradição galhofa imperava na cerimônia no Prêmio Esso. No dia do evento, pouco antes do almoço, finalistas do prêmio (5 por categoria) instalados no hotel reservado para a cerimônia (sempre um 5 estrelas, no Rio de Janeiro) começavam a se reunir na piscina. Completa, a trupe não reunia menos que 30 pessoas, por baixo.

Com a conta de consumo era liberada, logo começavam os pedidos ao bar – pedidos de Moët & Chandon, bien sur, mais camarão e lagosta, para acompanhar.

Garrafas eram ajuntadas num canto da mesa como se fossem de Brahma, e sempre havia alguém a gritar “a próxima rodada é por minha conta…”.

De noite, na cerimônia, coleguinhas flutuavam no salão encharcados de Moët & Chandon. Vencer ou perder já não importava tanto.

No dia seguinte, na portaria do hotel, a cena era desconcertante. “Senhor, foram então 5 garrafas de Moët & Chandon mais isso e aquilo e aquilo outro, confere?”, perguntava o incrédulo atendente ao fazer o check-out. Confere! “Basta assinar aqui”, informava então o funcionário, mostrando a fatura estelar que seria enviada a Esso.

Desconfio que na sede da ExxonMobil, em Irving, Texas (EUA), a imagem dos jornalistas brasileiros não deva ser das melhores.

P.S. Os prêmios deste ano serão entregues num jantar no dia 1º de dezembro, no Rio. Sem piscina e, sobretudo, sem consumo liberado.

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O repórter em cobertura de risco

Num fim de tarde do longínquo ano de 1995, quando cobria no Peru a reeleição do presidente Alberto Fujimori, a pauta do dia me levou a acompanhar uma manifestação de opositores, que protestavam contra as desavergonhadas fraudes ocorridas no pleito. Havia por volta de 500 pessoas, muito inflamadas. O clima era pesado.

Ao chegar à Praça Grau, em frente ao Palácio de Justiça, no centro de Lima, os manifestantes se depararam com uma barreira militar. Não se intimidaram. Munidos de pedras, avançaram. Avancei também, buscando, porém, ficar fora da linha do iminente combate.

Quanto tudo indicava que haveria o clássico embate homem a homem, um tanque de guerra surgiu e avançou sobre a praça, passando por cima de canteiros, indo em direção aos manifestantes. Num átimo, os opositores dispersaram, sendo seguidos pelos militares e pelo tanque. Bombas de gás lacrimogêneo espocavam em todos os lugares, fazendo a praça ficar dentro de uma nuvem.

Já não havia mais duas linhas, uma formada por manifestantes e outra por militares. Embolaram-se. A posição neutra onde eu me encontrara também desaparecera. Nenhum lugar era seguro.

Na confusão, vi colegas estrangeiros tirarem de dentro de suas mochilas coletes a prova de balas e máscaras anti-gás. Os equipamentos traziam em letras garrafais a palavra PRESS.

Eu não tinha nenhum daqueles equipamentos. Na verdade, nunca tinha passado pela minha cabeça que eu poderia precisar deles.

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Em 2004, nove anos depois, em Porto Príncipe, cobrindo os esforços da Força de Paz da ONU para a estabilização do Haiti, tive a oportunidade de acompanhar uma patrulha militar que buscava prender criminosos escondidos na Cité Soleil, maior favela da capital. O comboio era formado por veículos blindados, ladeados por militares fortemente armados. A mim, assim como aos demais jornalistas, sobrou um caminhão aberto. Fomos. Antes, porém, recebemos coletes a prova de balas e os tradicionais capacetes azuis das Forças de Paz da ONU. Perguntei quais os tipos de munição o colete conseguia resistir. Ouvi, aliado, que ele segurava tiros de fuzil.

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Quem era Steve Jobs despido do marketing?

Um mês e meio atrás, o jornalista Marco Lacerda – escritor talentosíssimo (são dele Favela High-Tech, Clube dos homens bonitos e As flores do jardim da nossa casa) e arguto correspondente internacional – publicou na revista eletrônica Dom Total um delicioso texto sobre Steve Jobs, que conheceu pessoalmente. No artigo, Lacerda nos revela um Jobs diferente daquele que o marketing da Apple esculpiu: arrogante, sarcástico e paranóico. Bom dia para reler o texto de Marco Lacerda.

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Meu encontro com Steve Jobs

Por Marco Lacerda, jornalista, escritor e editor especial do Dom Total

A primeira vez que encontrei Steve Jobs foi num vôo de Miami para San Francisco, onde eu trabalhava como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo. Naquele ano,1985, eu tinha me afastado das minhas funções por um período de seis meses para fazer um retiro em Tassajara, o mosteiro zen-budista situado nas montanhas da Califórnia.

Um dos últimos passageiros a entrar no avião era Steve Jobs. Quando o avião atingiu a altura de cruzeiro, não hesitei penetrar sorrateiramente na primeira classe e o abordei com a intenção apenas de marcar uma entrevista mesmo estando de licença do jornal. Afinal de contas não é todo dia que se tem um ícone da informática ao alcance da mão.

Gentil, Jobs me ofereceu o acento ao seu lado. Na época, aos 31 anos, ele tinha acabado de levar um pé no traseiro da Apple, empresa da qual fora um dos fundadores, e estava disposto a falar, mesmo que fosse com um jornalista brasileiro anônimo, talvez pela razão sentimental de ter namorado uma carioca com qual quase se casou nos tempos de estudante universitário. Ou talvez pela estranha coincidência de fazer visitas esporádicas a Tassajara, onde cultivava uma longa amizade com o mestre zen Tenshin Reb Anderson.

Combinamos de nos encontrar em San Francisco um mês depois. No dia acertado a secretária dele me ligou marcando a entrevista. Durante uma semana ele permitiu que eu participasse de reuniões na sede da Next, empresa que acabara de abrir, e me convidou para um jantar em sua casa de Mill Valley, cidade situada do outro lado da Golden Gate Bridge, onde só vivem americanos muito ricos e, não raro, poderosos.

Depois do jantar Steve me mostrou um álbum que contava em fotos a história da Apple, com ênfase na equipe de cientista que participou da criação do computador Macintosh, sua última grande realização antes de deixar a empresa.

Nascido em San Francisco em 1955, de uma família sem muitos recursos, seus pais biológicos o deram para adoção, pois não tinham condições de oferecer-lhe uma boa fomação que no futuro lhe permitisse cursar uma universidade. Em 1976, ao lado de seu parceiro tecnológico Steve Wozniak, Jobs fundou a Apple Computers numa garagem de San Francisco, e logo lançaram os computadores Apple I e II. Com a empresa capitalizada por seus computadores “criativos” e simples, respeitada por sua ousadia, a partir de 1979 a dupla inciou a criação de um projeto que iria revolucionar tudo em matéria de hardware e software. Era o então projeto Macintosh, que ainda estava em suas cabeças e no papel.

Em 1984, a Apple lançou o Macintosh, o primeiro e único computador com recursos de desenho, tipografia, além de uma interface gráfica abundante. O lançamento do computador foi feito com um grande estardalhaço através de uma campanha publicitária exibida na TV americana nos intervalos do Super Bowl, evento esportivo que atinge picos de audiência enormes. O comercial foi emblemático por sua idéia criativa: era uma citação do livro de ficção científica de George Orwell, “1984”.

Em 1985, Jobs foi forçado a deixar a Apple pelo conselho de administração da empresa, e fundou um outro negócio de computadores, a NeXT. Em 1986, comprou a Pixar da LucasFilm, que anos mais tarde ficou famosa pela nova linguagem em 3D para desenhos animados que lançou no mercado.

Na década de 1990, a Pixar, sob liderança de Steve Jobs, produziu o primeiro filme infantil animado na sua totalidade por computador, Toy Story, embora haja controvérsias e muitos considerem que este feito pertença à produção brasileira Cassiopéia. Em 2006 a Walt Disney Company adquiriu a Pixar por 7,4 bilhões de dólares. A Disney/Pixar é atualmente o maior estúdio de filmes animados do mundo.

A rivalidade de Steve Jobs com Bill Gates, ex-presidente e dono da Microsoft, é outro fato marcante. Essa disputa pode ser conferida no filme produzido pelo canal de TV a cabo TNT, “Pirates of Silicon Valley” (Piratas do Vale do Silício, na versão em português), que aborda a biografia deles e das suas empresas, algumas vezes de forma exagerada. Podemos ver a disputa que existia entre os dois muito antes de serem os ícones que são hoje. Apesar de tudo, atualmente vieram a ser bons amigos e empresas parceiras.

A notícia, divulgada no dia 25 de agosto passado, de que Steve Jobs renunciara ao seu cargo na Apple – por motivos de saúde gravíssimos –, me fez recordar o nosso encontro em 1985. Era voz corrente no mundo da informática que Jobs nunca foi um homem chegado ao consenso, mas um ditador que só escutava a própria intuição. Tinha um raro sentido de estética, que falta à maioria dos homens de negócio. Em reuniões de trabalho podia ser cruel com seus subordinados e desdenhar de um membro do staff que apresentasse alguma idéia tola.

O Steve Jobs que eu tive a oportunidade de acompanhar durante uma semana parecia um homem arrogante, sarcástico, culto, dono de uma inteligência descomunal, ao mesmo tempo paranóico e dotado de um carisma invejável. O Steve Jobs que o mundo conheceu nos últimos 15 anos, desde o seu retorno à Apple, não mudou nada. Nunca deu trégua aos funcionários da empresa, jamais deixou de se guiar pela intuição na hora de decidir o design ousado que seus produtos deveriam ter e como deveriam funcionar. As intuições de Jobs sempre foram de tal forma magníficas – e seu carisma tão poderoso – que seus funcionários nunca hesitaram em seguí-lo. A Apple vai sentir falta sobretudo dessa intuição.

A maioria dos artigos publicados nos últimos dias, desde a renúncia de Jobs, enfocaram sobretudo suas criações recentes, mas é sempre bom lembrar que esses produtos são apenas a cereja no topo do bolo. Jobs é o inventor do computador pessoal, do refinamento alcançado pela computação moderna, o criador que salvou a Apple da falência quando desenvolveu o Macintosh. Depois vieram o iPod, o iPhone e o iPad – todos tão elegantes em seu design e funcionalidade que acabaram por se tornar mais que aparelhos. Tornaram-se objetos luxo e cobiça.

Nos últimos tempos Jobs passou a ser chamado de gênio. Artigos recentes se referem a ele como o Henry Ford dos tempos modernos, o homem que fabricou o primeiro carro que a classe média americana podia comprar. Durante o nosso encontro em San Francisco, Jobs comparou sua recém-nascida indústria de computadores à indústria de carros iniciada por Henry Ford, que mudou a história do mundo.

Ao renunciar prematuramente ao posto de líder da Apple, aos 56 anos, Jobs experimentou, mais e melhor que qualquer ser humano vivo, o sentimento de glória que certas conquistas podem trazer. Por isso já tem lugar marcado na história como um homem que ousou sonhar e apresentar sua visão ao mundo. Ao anunciar a renúncia de Jobs, o jornal alemão Volkskrant disse em grande manchete: “Os fãs e adeptos da Apple perderam o seu messias”.

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Leia aqui outros textos de Marco Lacerda.


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Agenda

Convido para um dedo de prosa aos que puderem prestigiar os eventos em que estarei em outubro e novembro.

9 de outubro (domingo)

Diamantina (MG)

Festival de História (fHist), promovido pela Revista de História da Biblioteca Nacional. Debaterei com Eduardo Bueno e Sérgio Bandeira de Mello, com mediação de Oldimar Cardoso, o tema “História para muitos”. Horário: 17h. Local: Tenda dos historiadores

24 de outubro (segunda-feira)

Sete Lagoas (MG)

Debate e lançamento do livro Boa Ventura!, organizado pela Prefeitura de Sete Lagoas. Horário: 19h. Local: Casa da Cultura (av. Getúlio Vargas, 91, Centro).

10 de novembro (quinta-feira)

São Paulo

Seminário Internacional de Jornalismo, promovido pela revista Imprensa. Farei o papel de mediador na mesa “O DNA da reportagem”, com a presença do correspondente de guerras norte-americano David Rohde, da Reuters. Horário: 19h30. Local: a definir

13 de novembro (domingo)

Ouro Preto (MG)

Fórum das Letras, promovido pela UFOP. Debaterei com Frei Betto e Ângelo Oswaldo as Minas Gerais do ciclo do ouro no século XVIII. Horário: 15h. Local: a definir

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Abin: a necessária ruptura

Em meu livro Ministério do Silêncio – A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula (1927-2005), conto a história de um militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro) aprovado, na virada de 1994 para 1995, no primeiro concurso público para agente do serviço secreto – que na época respondia pela sigla SSI (Subsecretaria de Inteligência), hoje Abin (Agência Brasileira de Inteligência). Escrevi:

“No caso do tal sujeito de Recife ligado ao PCB, ele foi encostado numa função burocrática de um setor mais burocrático ainda. Considerado suspeito de ser um espião a serviço dos comunistas, nunca teve acesso a documentos e missões importantes. Assim, tecnicamente, a SSI cumpriu sua palavra de não fazer triagem ideológica dos candidatos. Mas também não deixou de tomar suas precauções”.

Descubro agora, seis anos depois, a identidade daquele personagem sem nome. Ele se chama Roberto Numeriano, um profícuo doutor em ciências políticas, especialista em…. serviços de inteligências.

Como vocês verão no artigo abaixo, escrito por Numeriano para o blog, ele tem muito a contribuir para a reformulação do serviço secreto brasileiro. Com a palavra, Roberto Numeriano.

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Agência Brasileira de Inteligência: a necessária ruptura

Roberto Numeriano*

A decisão do senador Fernando Collor, presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE), em abrir uma discussão parlamentar, acadêmica e social sobre a atividade de Inteligência poderá significar, neste início de legislatura e de governo, a possibilidade de conhecer, com isenção e sem preconceitos, uma área do poder estatal sobre a qual pairam críticas quanto à efetividade do seu trabalho, bem como dúvidas a respeito dos meios e métodos de controle e fiscalização dos seus agentes e órgãos.

Esta discussão é fundamental para iniciar a ruptura com legados político-institucionais que ainda bloqueiam a legitimação da Inteligência civil brasileira. Tais legados subsistem politicamente, com efeitos sobre: a) o grau de confiança inter-institucional (a Abin em relação a outros órgãos, a exemplo da Polícia Federal); b) a coesão e unidade de ação entre os órgãos da área para fazer cumprir as diretrizes de Inteligência (o Sistema Brasileiro de Inteligência não funciona sistemicamente); c) a credibilidade da sociedade civil no órgão (são constantes as críticas dos formadores de opinião sobre a necessidade de um serviço de Inteligência); d) a eficácia do trabalho operacional e de análise; e) a disposição dos quadros de Estado em demandar a agência como potencial formuladora estratégica na área de segurança e defesa; e f) a existência de conflitos internos. Sem dúvida, a Abin padece desses problemas em maior ou menor grau, com graves prejuízos no desempenho de sua missão constitucional.

A Abin, criada em 1999, na gestão de Fernando Henrique Cardoso, tem como missão institucional prover o Executivo federal de conhecimentos na forma de relatórios de Inteligência, para ajudá-lo, entre outras tarefas, na execução das políticas de segurança e defesa do Estado e da sociedade.

A agência brasileira ocupa-se do campo interno e externo. No campo interno, dedica-se a temas diversos, tais como o acompanhamento da criminalidade organizada e de movimentos sociais (a exemplo do MST). No campo externo, busca coletar, analisar e disseminar conhecimentos para prevenir a ação adversa de estrangeiros e/ou instituições contra alvos em território brasileiro, na forma de atos de sabotagem e terrorismo.

Mas a Abin sofre uma crise de identidade, efeito daqueles legados. Carece, em primeiro lugar, de legitimidade que somente a opinião pública, o Congresso Nacional, o mundo acadêmico e a comunidade de Inteligência podem conferir. Carece, também, de uma efetiva civilianização, dado que certas crenças, culturas e comportamentos permanecem inspiradas numa doutrina de corte militar, como nos tempos do Serviço Nacional de Informações (SNI).

A crise pode ser caracterizada como um impasse entre uma mentalidade típica de Inteligência como polícia política, e uma visão democrática da Inteligência sob um Estado de direito democrático. De fato, a Abin ainda vive sua transição político-institucional. Essa transição, internamente à agência, provocou o surgimento de grupos que disputam a hegemonia na instituição, todos em busca de um consenso que possa legitimá-los.

A crise de identidade requer uma resposta.  Mas, para compor uma agenda da Inteligência de Estado, é necessário uma ruptura institucional com aquelas crenças, mentalidades e costumes contaminados pelo espírito da Doutrina de Segurança Nacional. É preciso civilianizar a Abin, ou seja, torná-la, de fato e de direito, um órgão de Inteligência civil. Civilianizar a atividade significa a) tornar efetivos os mecanismos de controle e fiscalização, internos e externos; b) constitucionalizar a atividade mediante uma emenda que estabeleça as competências da atividade; c) renovar os quadros de direção; d) extinguir da agência (órgão civil) símbolos e práticas de natureza militar; e) expurgar da Doutrina de Inteligência os ecos / legados autoritários e, ao mesmo tempo, f) sair da tutela do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

A agenda requer um debate extenso e profundo, do qual não pode se furtar a sociedade. É pacífico que todos os Estados necessitam de serviços de Inteligência. Embora pareça um paradoxo, são justamente os Estados de democracia consolidada que precisam manter órgãos de prevenção e repressão aos crimes, em face de sua maior vulnerabilidade à ação adversa de grupos contrários ao Estado de direito. Para legitimar-se institucionalmente (debelando estigmas e preconceitos), a Abin, que tem uma missão fundamental e nobre na defesa estatal e da sociedade, precisa fazer a ruptura democrática diante dos velhos legados e impasses.

*Roberto Numeriano, Oficial de Inteligência da Abin, é mestre e doutor em Ciência Política (UFPE), além de membro do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas e da Criminalidade da Universidade Federal de Pernambuco (NICC / UFPE). Publicou o livro Serviços Secretos: A Sobrevivência dos Legados Autoritários.

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Os bastidores da incrível história do filho de FHC que não é filho de FHC (ou quando todos erramos juntos)

FHC e um equívoco que durou 19 anos

No início de 1994, quando o então presidente Itamar Franco indicou como sucessor seu ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, Brasília passou a respirar dilemas. Que tratamento FHC daria, na campanha eleitoral, à história do filho que tivera fora do casamento? A imprensa devia ou não divulgar a história? E se algum adversário de Fernando Henrique abordasse o assunto na TV, ao vivo, num debate eleitoral?

Já naquele ano, na capital federal, até os paralelepípedos da Praça dos Três Poderes sabiam que Fernando Henrique era pai de Tomás, de 2 anos, filho da jornalista Miriam Dutra, da TV Globo. Mirian revelara o caso para amigos, e a história se espalhara. Enquanto FHC foi senador e ministro (Relações Exteriores e depois Fazenda), todos consideraram o assunto como sendo da esfera privada, mas na condição de candidato a presidente a coisa mudava de figura.

Não foi fácil para FHC. Ele se preparou para a eventualidade de, na campanha, ser obrigado a falar em público sobre caso. Pior: sua mulher, a antropóloga Ruth Cardoso, foi obrigada a fazer o mesmo.

As redações também se mexeram. Com receio de serem furados pela concorrência, os principais jornais e revistas do país mandaram repórteres à rua para fazer a reportagem do filho de FHC. Porém, nenhum deles publicou a história.

A apuração era apenas de uma medida profilática. A assessoria de Fernando Henrique havia costurado um pacto com os donos dos maiores meios de comunicação para garantir o silêncio durante a campanha. Um pacto que, a princípio, parecia ter dado certo. Além de nenhum veículo de comunicação ter dado a história, os adversários de FHC, por sua vez, evitaram abordar o tema durante o período da eleição.

No início de 1995, eleito presidente, FHC levou consigo os dilemas para o Palácio do Planalto. E eles haviam crescido.

Para proteger FHC, a TV Globo transferiu Miriam Dutra para Portugal. Foi a forma encontrada para “esconder” o problema do presidente da República, já que Lisboa era – e continua sendo – uma praça que gerava pouca notícia. Assim, Miriam Dutra sumiu de cena e da telinha.

A operação, contudo, deixou ainda mais evidente que Fernando Henrique tinha um calcanhar de Aquiles.

Alguns jornalistas de Brasília – e eu me incluo entre eles – passaram as pressionar as chefias para dar a reportagem do filho do presidente. O argumento era simples: como o presidente da República estava sendo socorrido pela TV Globo (uma empresa privada que detém concessões públicas), o caso tinha saído da esfera privada e evoluíra para uma perigosa ação entre amigos. Uma coisa era o cidadão Fernando Henrique Cardoso ter um filho fora do casamento, outra era o presidente da República socorrer-se com a maior TV do país para resolver um delicado problema pessoal.

As pressões foram em vão. A grande imprensa se recusava a dar a história do filho de FHC.

Em abril do ano 2000, segundo ano do segundo mandato de Fernando Henrique, o silêncio foi quebrado pela revista Caros Amigos. “Por que a imprensa esconde o filho de 8 anos de FHC com a jornalista da Globo” era o título de uma matéria de capa assinada por Palmério Dória, João Rocha, Marina Amaral, Mylton Severiano, José Arbex Jr. e Sérgio de Souza. Um repórter da revista localizou Miriam Dutra na Espanha, para onde ela havia sido transferida, e conversou rapidamente com ela. “Eu não vou falar nada sobre essa história”, disse Miriam ao jornalista de Caros Amigos. “Eu não sou uma pessoa pública. Se vocês têm algo para perguntar, não é para mim. Perguntem para a pessoa pública”, afirmou ela.

Nenhum grande jornal, revista ou TV repercutiu a reportagem de Caros Amigos.

Em 2003, FHC deixou a Presidência. E a história do filho parecia ter voltado para a esfera privada.

Em 2009, contudo, um ano após a morte de Ruth Cardoso, Fernando Henrique reconheceu a paternidade de Tomás, conforme noticiou em primeira mão a coluna de Mônica Bergamo, na Folha de S.Paulo. O caso então passou a ser tratado abertamente na imprensa. O tabu não existia mais.

Na semana passada, uma nova reviravolta. A coluna Radar, da Veja, informou que, pressionados por filhos que FHC tiveram com Ruth Cardoso, o ex-presidente e Tomás, hoje com 19 anos, finalmente se dispuseram a fazer um teste de DNA. O primeiro exame deu negativo. O segundo, também. Para espanto de todos, inclusive de ambos, Fernando Henrique não é o pai de Tomás.

Todos, sem exceção, estávamos errados.

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Histórias de repórter: o dia que Ricardo Teixeira tentou me me calar

Ricardo Teixeira costuma fazer uma grande pressão para que os jornalistas o retratem como santo. Nem sempre dá certo

As recentes denúncias feitas fora e dentro do Brasil contra Ricardo Teixeira, presidente da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), tem para mim um significado especial. O esquema que agora se descortina foi arranhado por mim – e a um custo alto – três anos atrás numa reportagem publicada nos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.

Em 20 anos de profissão, já havia sofrido muita pressão para engavetar uma apuração, mas poucas vezes elas foram tão intensas e ardilosas como no caso da pauta que envolveu Ricardo Teixeira.

Como diria Odorico Paraguaçu, é com a alma lavada e enxaguada que apresento a reportagem.

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O elo perdido da corrupção mundial

Correio Braziliense e Estado de Minas, 13 de abril de 2008

Por Lucas Figueiredo

Suíça e Liechtenstein – O que alguns dos piores ditadores, mais temidos traficantes internacionais de drogas e maiores corruptos de todos os tempos têm em comum com o deputado Paulo Maluf (PP-SP) e com o presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Ricardo Teixeira? Resposta: em algum momento da vida, todos eles fizeram suspeitas transações financeiras com um dos maiores lavadores de dinheiro do planeta. Seu nome: Herbert Batliner, advogado de Liechtenstein, paraíso fiscal da Europa.

A especialidade de Batliner é ajudar seus clientes a movimentar dinheiro pelo mundo sem deixar rastros. Ele já foi acusado de prestar serviços para gente do calibre de:

1) Pablo Escobar, o megatraficante colombiano, morto em 1993, que faturava anualmente US$ 30 bilhões com a venda de cocaína;

2) Mobuto Sese Seko, que por três décadas foi ditador do antigo Zaire (atual República Democrática do Congo), período no qual acumulou uma fortuna de US$ 5 bilhões;

3) Ferdinando Marcos, ex-presidente das Filipinas, um dos homens mais corruptos do mundo;

4) Jorge Hugo Reyes-Torres, o maior traficante de drogas do Equador, que antes de ser preso enviava mensalmente 500 quilos de cocaína para a Espanha;

5) Família Real Saudita, que controla com mão de ferro o país que detém a maior produção mundial de petróleo.

O que liga Paulo Maluf a Batliner é um endereço. Já com Ricardo Teixeira, a conexão se dá por intermédio de uma pessoa.

Paulo Maluf

Muita coisa já se falou das famosas contas bancárias de Paulo Maluf no exterior. Sabe-se que, na década de 1990, Maluf utilizou laranjas para movimentar pelo menos US$ 350 milhões em bancos europeus – principalmente na Suíça, na França e na Ilha de Jersey (Canal da Mancha). Sabe-se também que, por decisão da Justiça desses países, cerca de US$ 250 milhões estão congelados. O que não se sabia é que o ex-governador e ex-prefeito de São Paulo utilizou os serviços de Herbert Batliner para movimentar boa parte dessa fortuna.

Uma das contas de Maluf na Suíça, de onde partiram remessas milionárias para Jersey, tinha como titular a Fundação White Gold (ouro branco). Conforme documentos em poder do Ministério Público, a fundação foi constituída por Maluf na cidade de Vaduz (capital do minúsculo principado de Liechtenstein), na Rua Aeulestrasse, número 74, caixa postal 86. Como constatou o Estado de Minas, no entanto, nesse endereço não funciona nenhuma Fundação White Gold, mas sim a First Advisory Group, empresa que tem como sócio Herbert Batliner.

A First Advisory Group serve como uma espécie de biombo para empresas fantasmas. Calcula-se que pelo menos 10 mil empresas de fachada usam o endereço comercial de Batliner. A Fundação White Gold é uma delas. Há outras, como a Fundação Pérolas Negras, controlada por Flávio Maluf, filho do deputado.

Batliner não opera apenas com a First Advisory Group. Na mesma Rua Aeulestrasse, no número 38, funciona a Prokurations-Anstalt, outra incubadora de empresas fantasmas pertencente a Batliner. No mesmo endereço da Prokurations-Anstalt estão registradas, por exemplo, as fundações Alyka e Abutera, que têm como beneficiária Lígia Maluf, filha do deputado Paulo Maluf.

Especialista em crime organizado, o ex-comissário de polícia da Suíça Fausto Cattaneo analisou a coincidência de endereços das empresas de Batliner e das fundações abertas pela família Maluf. Com os resultados da pesquisa, Cattaneo afirmou ao EM que não há dúvidas de que existe uma conexão suspeita entre o advogado de Liechtenstein e o deputado brasileiro.

Ouvido pela reportagem, o procurador-geral de Genebra, Daniel Zappelli, confirmou que, por ordem judicial, há dinheiro de Maluf congelado em bancos da Suíça. “Fizemos tudo o que pudemos no caso Maluf.” Segundo ele, é possível que os recursos sejam devolvidos aos cofres públicos brasileiros. “Mas primeiro o Brasil tem de provar que o dinheiro congelado na Suíça é produto de corrupção”, afirmou Zappelli.

O Estado de Minas perguntou à assessoria de Maluf se o deputado e seus familiares confirmavam serem responsáveis pela abertura de fundações em Liechtenstein e se foram beneficiados com suas movimentações financeiras. O EM perguntou também se o deputado tinha conhecimento das conexões de Batliner com traficantes, ditadores e corruptos. A assessoria se limitou a responder que Maluf nunca teve contas bancárias no exterior.

Ricardo Teixeira

As ligações perigosas de Herbert Batliner no Brasil também se estendem a Ricardo Teixeira, presidente da CBF e principal articulador da escolha do Brasil como país-sede da Copa do Mundo de 2014.

Como ficou comprovado em 2001 na CPI da CBF/Nike, uma das empresas de Teixeira, a R.L.J. Participações, tomou de empréstimo de uma firma de Liechtenstein, a Sanud Etablissement, uma quantia equivalente à época a R$ 2,9 milhões. Antes que o empréstimo fosse pago, porém, a Sanud Etablissement foi fechada. Integrantes da CPI chegaram a classificar a transação como lavagem de dinheiro, mas nada foi comprovado.

Porém, um dado suspeito passou ao largo da CPI: a Sanud Etablissement era uma costela de Herbert Batliner. Dois dos representantes da Sanud Etablissement – Alex Wiederkehr e Hans Gassner – eram sócios de Batliner na empresa Prokurations Anstalt.

Hans Gassner tem um passado complicado. No final dos anos 1990, ele se envolveu no escândalo do banco espanhol Banesto, no qual dirigentes da instituição desviaram de seus cofres cerca de 10 milhões de euros (o equivalente a R$ 27 milhões). A função de Gassner era movimentar o dinheiro e apagar sua origem.

Após analisar informações referentes a transações financeiras da empresa do presidente da CBF e da Sanud Etablissement, o ex-comissário suíço Fausto Cattaneo afirmou que, “assim como Paulo Maluf, Ricardo Teixeira tem conexões com Herbert Batliner”.

A assessoria de imprensa da CBF afirmou que Ricardo Teixeira não iria comentar o caso.

Fortunas

Com apenas 32 mil habitantes (número suficiente para encher apenas metade do Mineirão), o minúsculo principado de Liechtenstein – paraíso fiscal encravado entre a Suíça, a Alemanha e a Áustria – é um dos países mais ricos. O produto de exportação de Liechtenstein são as empresas fantasmas (há duas para cada habitante) e as instituições financeiras.

Nessa verdadeira lavanderia vip, destaca-se o nome de Herbert Batliner. Um gesto de generosidade de Batliner dá a dimensão de sua riqueza. Em 2006, ele e sua mulher, Rita Batliner, doaram ao Museu Albertina de Viena (Áustria) uma coleção de 500 quadros, avaliada em 400 milhões de euros (R$ 1 bilhão). Entre as obras, há preciosidades de Picasso, Monet, Renoir, Francis Bacon, Matisse, Cézanne, Modigliani e Miró.

Instalada na sede dos correios de Vaduz (capital de Liechtenstein), a caixa postal número 86 pertence à empresa First Advisory Group, do advogado Herbert Batliner. Batliner “aluga” a caixa postal, possibilitando a seus clientes que registrem com este endereço suas empresas de fachada. Paulo Maluf, por exemplo, abriu em Vaduz a Fundação White Gold, que tem como endereço formal: Rua Aeulestrasse, número 74 (mesmo endereço da First Advisory Group), caixa postal 86.

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Peru: duas fotos, dois momentos, dois Fujimori

Muitos me perguntam pela foto que ilustra o topo do blog. Boa época para falar sobre ela.

A imagem foi feita no Peru, em 1993, pela extraordinária repórter-fotográfica peruana Cecília Simpson. Corria então a metade do primeiro de três mandatos do presidente Alberto Fujimori. No ano anterior, ele sacudira o país com dois eventos: um autogolpe, com fechamento do Congresso, e a prisão do terrorista número um do país, Abimael Guszmán, líder do sanguinolento Sendero Luminoso.

Fujimori era o herói e o vilão do Peru.

Eu ao lado do capitão Renzo, do Exército peruano, no interior de Ayacucho, em 1993

Eu, trabalhando para a revista belga Défis Sud, e Cecília, para o jornal peruano El Comercio, viajávamos a Ayacucho para registrar um fenômeno social incrível: o retorno de famílias de trabalhadores rurais que haviam sido expulsas de suas terras pelo Sendero Luminoso 20 anos antes. Não era um retorno fácil. Por falta de segurança, a população ainda era obrigada a viver acampada em torno de uma esquálida base do Exército. De manhã, com uma chamada oral, os militares conferiam se todos ainda estavam lá. Em seguida, escoltados por soldados de fuzis nas mãos e olhos fixos nas montanhas, os camponeses seguiam até suas antigas propriedades. Passavam o dia a trabalhar na terra e podiam visitar suas casas abandonadas, algumas delas em ruínas. Mas, por falta de segurança, não podiam ainda ficar. Antes do fim da tarde, os camponeses retornavam ao acampamento, onde era feita nova chamada oral. Quando a noite chegava, o medo de um ataque surpresa rondava a cabeça de todos. No outro dia, tudo se repetia.

O temor de um ataque não era sem propósito. Não havia um camponês sequer com os quais convivi naqueles dias que não tivesse pelo menos um familiar sequestrado ou morto pelos terroristas de esquerda ou por grupos paramilitares de extrema direita ligados às Forças Armadas.

Foram muitos os que aconselharam a mim e a Cecília a não viajar pelo interior de Ayacucho. Na capital do Departamento (estado), também chamada Ayacucho, um militar nos mostrou fotos feitas pelo Exército pouco tempo antes: uma dezena de cabeças cortadas num campo de futebol da região. Terroristas do Sendero haviam invadido uma pequena vila rural, matado todos os homens e, depois, jogado futebol com as cabeças.

Antes de viajar ao interior, ainda na capital Ayacucho, tive a sorte de fazer minha primeira entrevista com o presidente Fujimori, que chegara de surpresa para uma visita. No dia seguinte, eu e Cecília partimos para ver como viviam los desplazados (na tradução literal, “os deslocados”). Nossos guias foram um jornalista local, Hugo, e seu segurança, um assassino profissional chamado El Gatito. De Ayacucho até a base do Exército, rodamos algo em torno de 150 quilômetros. Ao volante de seu velho Fusca, ia Hugo e  ao seu lado o tenso El Gatito, com um revólver 38 na mão direita. No banco de trás, eu e Cecília.

Quando o Fusca atolou, pensamos: ferrou! (não foi exatamente essa a palavra). Nossa sorte foi que apareceu o capitão Renzo com seus homens. Depois de ouvir um sermão, fomos resgatados e levados à tal base esquálida do Exército, onde ficamos “hospedados” por alguns dias.

Numa das expedições diárias para acompanhar aquele bizarro cultivo da terra sob canos de fuzil, Cecília fez a foto que ilustra o blog. O barbudo com a câmera na mão sou eu; ao meu lado, o capitão Renzo. Ao fundo, os soldados a vigiar as montanhas.

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Sete anos mais tarde, retornei ao Peru para entrevistar Fujimori pela terceira vez. De madrugada, em Lima, um assessor do palácio presidencial telefonou para mim com um recado: eu deveria estar na porta do hotel às 5h da manhã para ser apanhado por um oficial do Exército que me levaria ao encontro de Fujimori. Eu viajaria com El Chino, mas, por uma norma da segurança, só saberia para onde quando estivesse dentro do avião presidencial.

O momento era bem diferente. O país fora “pacificado” por Fujimori – a golpes de tacape, bombas e muitos tiros de fuzil, é bem verdade. O terrorismo agonizava. Fujimori se preparava para disputar a re-reeleição, uma invenção bem ao estilo Fujimori.

Para se perpetrar no poder, ele fraudaria as eleições mais uma vez e usaria contra seus adversários todo o repertório sujo do serviço secreto – o temido SIN (Serviço de Inteligência Nacional), comandado pelo assassino e traficante (de armas e drogas) Vladimir Montesino.

Naquele ano, Fujimori foi re-reeleito – sob as bençãos do governo Fernando Henrique Cardoso, diga-se de passagem. Naquele ano também, em decorrência de uma série de escândalos, El Chino abandonou a Presidência e fugiu para o Japão.

Mas não falei ainda da minha viagem com Fujimori. Para minha surpresa e alegria, nosso destino era o interior de Ayacucho. Como mostra a foto abaixo, fazia muito frio e Fujimori usava um belo poncho. Eu, desprevenido, tremia o queixo.

O então presidente do Peru, Alberto Fujimori, e eu, no interior de Ayacucho, no ano 2000

Nossa comitiva viajou sob um pesado esquema de segurança. Mas, nesse quesito, o Peru do ano 2000 certamente era melhor que o de 1993. Salvo uma ou outra célula do Sendero Luminoso e do MRTA (Movimento Revolucionário Túpac Amaru), a região de Ayacucho, bem como todo o país, estava praticamente livre do terrorismo. Los desplazados já viviam em suas casas e não precisam mais plantar sob a vigilância de soldados.

Fujimori foi bom para o Peru.

Fujimori foi péssimo para o Peru.

Foi isso que o eu vi.

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O Brasil do “coronel Fancoil”

Jornalistas e militares riem juntos no Palácio do Planalto. E isso é uma coisa muito séria.

No andar térreo do Palácio do Planalto, há uma grande sala com piso de mármore branco onde a presidente Dilma Roussef não manda. Lá fica o comitê de imprensa, onde trabalham repórteres e fotógrafos dos principais veículos de comunicação do país e alguns do exterior. O ritmo é de pronto-socorro. Havendo notícia, trabalha-se. E, quando não há o que relatar, a turma coça.

Quando o segundo cenário prevalece, além de coçar, os jornalistas procuram inventar algo para espantar o tédio. Mas se tem um jornalista calouro no pedaço, nem é preciso procurar passatempo. De uns anos para cá, reza a tradição que todo novato deve ser submetido ao trote do “coronel Fancoil”.

No corredor que separa o comitê de imprensa dos banheiros, há um cômodo sempre fechado com uma placa na porta escrita “Fancoil”. Lá dentro, fica o ar-condicionado central do andar, mas os novatos não sabem disso. E por não conhecerem essa informação aparentemente irrelevante, acabam por fazer as tardes de fastio no comitê de imprensa ganharem alguma graça.

O primeiro passo do trote é fazer chegar ao calouro a notícia de que está para acontecer no palácio um evento político muito importante, algo de uma relevância tal que requer um credenciamento especial. O calouro então é informado de que deve pegar a credencial com o “coronel Fancoil”, cujo gabinete é indicado com uma placa na porta. Agora a cereja do trote: como o “coronel Fancoil” é quase surdo, o novato precisa bater na porta com força e gritar o nome do coronel. É batata! O repórter ou fotógrafo estreante esmurra a porta e grita “CORONEL FANCOIIIIIIIIIIIIL” por alguns intermináveis segundos e só percebem que está pagando mico quando o comitê de imprensa explode numa risada.

Não faz muito tempo, o Palácio do Planalto não era exatamente um bom lugar para brincadeiras envolvendo militares. Não à toa, mesmo depois da ditadura, jornalistas continuaram alimentando um certo temor pelas casacas verde-oliva cravejadas de estrelas douradas – e na sede do Executivo elas estão por toda a parte. O medo, contudo, passou.

Do lado de lá do balcão, a mudança também é perceptível. Nos últimos anos, vi coronéis se dobrando às gargalhadas no Palácio do Planalto com o trote do colega “Fancoil”. Naquele prédio desenhado por Oscar Niemeyer, há de fato algo novo no ar. Na despedida de Luiz Inácio Lula da Silva no Planalto, no ano passado, vi militares de alta patente, e não foram poucos, chorando igual criança porque o “chefe” ia embora. Não custa lembrar que o tal “chefe” foi, durante décadas, o inimigo público número um da caserna, o diabo em forma de candidato.

Dilma é outro caso revelador. A ex-guerrilheira atrai simpatias e antipatias entre os militares do Palácio do Planalto, como é natural. Mas todos, sem exceção, obedecem a hierarquia e rendem obediência àquele que é a comandante-em-chefe das Forças Armadas.

Hoje, jornalistas, militares e ex-guerrilheiros podemos até rir, todos juntos, do trote do “coronel Fancoil”. A evolução de uma sociedade às vezes se esconde nos detalhes.

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