[NOTÍCIAS DE PORTUGAL – 2] Resenha crítica de Boa Ventura!/A Última Pepita

Reproduzo abaixo resenha crítica do meu livro Boa Ventura! (título da edição brasileira) ou A Última Pepita (título da edição portuguesa) feita pelo professor da Universidade dos Açores Vamberto Freitas para os jornais Açoriano Oriental  (Ponta Delgada, Açores), Portuguese Times (New Bedford, EUA) e JL (Lisboa).

xxx

Portugal e Brasil, ou o eterno esbanjamento lusíada

Sim, mais uma vez Portugal encontrava-se dependurado em dívidas, e já havia temporada que nem ao menos os juros eram honrados. (Lucas Figueiredo, A Última Pepita)

Vamberto Freitas

Tem acontecido sempre o mesmo ao longo dos séculos: quando Portugal entra em dívidas e nem tem que chegue para os juros, acontece sempre o mesmo: fica despovoado, vai criar riqueza noutras partes, para outros. O problema é que parece nunca ter havido um período da nossa história, pelo menos desde os Descobrimentos, em que Portugal não estivesse em dívida e em apuros, com a elite sempre a governar-se bem, e os restantes rastejando pela sobrevivência, até que atrevessem o Atlântico e se salvem num novo oásis a oeste, sempre a oeste, e nunca leste, como bem sabemos. Ler neste momento a magnífica narrativa histórica que é o recentemente publicado A Última Pepita: Os Portugueses e a Corrida ao Ouro do Brasil, de Lucas Figueiredo, será como ler qualquer livro sobre a nossa situação actualíssima, com a mesma linearidade e pormenores, que só mudam de nome: a descoberta de um novo maná, o seu esbanjamento imediato, o enriquecimento descarado e ilícito de uns tantos, e a pobreza generalizada de todos os outros portas adentro. Uma única nota positiva nesta ou noutras leituras abordando o mesmo tema, a mesma tragédia: nunca tem faltado uma saída, mesmo que só para recomeçar logo de seguida numa nova descida à indignidade de estado e de comunidade, nossa fiel irmã lusa. Só um pesquisador-jornalista-escritor poderia escrever com tanta clareza e múltiplos significantes, que interligam todo um passado ao nosso presente. A Última Pepita (o título refere-se à grande pedra de 20 quilos de ouro que tinha sido encontrado em Goiás em 1734 e obedientemente enviado a D. João V, só redescoberta em Lisboa por D. Luís I “num triste dia de 1876”) vem recheado de notas contextualizantes e de uma extensa bibliografia historiográfica, mas a sua leitura escorre como se de um romance se tratasse, pleno das mais estranhas e épicas personagens e acontecimentos entre São Paulo e os sertões de Minas Gerais,Goiás e Mato Grosso e Rondónia, com Lisboa servindo de centro vigilante e insaciável sugador. Existe mais uma dedução construtiva destas páginas de lágrimas, fúria e ladroagem nos dois lados do Atlântico: na busca do ouro que acabaria torrado nos cofres sobretudo ingleses e franceses para alimentar a pura vaidade e loucura aristocrática à beira Tejo, fundaram-se os alicerces de algumas das mais belas cidades do Brasil (como Ouro Preto, em Minas Gerais), e, muito mais importante ainda, os bandeirantes que deixaram as suas povoações paulistas ou litorais no início século XVII lutariam e empurrariam cada vez mais as fronteiras do seu país, mesmo quando tendo de levantar armas com o então inimigo de sempre naquelas partes, a Espanha, ocupando hoje mais de metade do continente sul-americano.

Revejo o meu exemplar de A Última Pepita, e verifico que está praticamente todo sublinhado e anotado pelas mais variadas razões, desde datas, nomes de figuras e “personagens” (pois alguns parecem mesmo saídos ma mais imaginativa ficção), áreas geográficas do interior do país imenso, mas sobretudo pelos imparáveis e audazes passos de prosa que nunca deixa de ser tão objectiva como, digamos, sentenciosa, vindo daí toda a sua cativante força narrativa para quem lê por puro prazer e, sim, aprendizagem. Que os “especialistas” debatam esta ou aquela afirmação, neguem ou não um “facto” ou outro, está fora dos meus interesses ou curiosidade. Quando uma história é contada pela primeira vez, ou revista segundo novas investigações ou imaginação na procura de outra documentação e outras fontes, como parece ser o caso aqui, ao leitor restará absorvê-la consoante o seu grau de interesse ou esclarecimento do tema, e ainda o prazer do texto, repita-se, tornando-se nos principais motivos de atenção sustentada. Quando esse texto se dirige ao passado de dois países para sempre em convivência total (a nossa “emigração” para lá começou logo em 1500, como se sabe, e nas últimas décadas recebemos mais de cem mil brasileiros nesta que é a sua pátria ancestral, ou pelo menos de indelével referência linguística e cultural), quando liga brilhantemente a sorte comum de dois povos, ninguém em qualquer das margens atlânticas poderá saber de si sem saber do outro. Que o ouro brasileiro foi uma condenação para nós, fica mais do que explícito neste livro, restando-nos, desde a cessação da sua chegada nas naus a meio do século XIX, a tal pepita gigantesca e inúmeras peças de ourivesaria escondida a sete chaves de quase toda gente, tendo servido só, ontem como hoje, a meia dúzia de privilegiados. Até nisso, a arrogância de Estado nos impõe. Mostram tudo portuguesmente a dignitários estrangeiros para impressionar e fazer de conta que um dia fomos muito ricos e de bom gosto — nem uma coisa nem outra é verdade, bom, na totalidade dos factos. Bem sei que estou em deriva aqui, ou chegando a conclusões insinuadas numa leitura deste livro, mas é-me inevitável neste preciso momento da nossa história “europeia” não ver em primeiro plano a continuidade de tudo que entre nós está errado, da repetição desavergonhada e sem fim daqueles que desde sempre estiveram ou estão responsáveis pelo nosso destino. Os brasileiros — tal como a grande maioria dos portugueses, não esqueçamos — perderam o ouro, mas pelo menos ganharam um grande país. A epopeia rumo ao território que viria a chamar-se muito correctamente de Minas Gerais faz da mesma aventura na Califórnia alguns dois séculos depois parecer uma brincadeira dominical de crianças. O grau de sofrimento e coragem dos portugueses e bandeirantes luso-brasileiros rumo a territórios selvagens do sertão e áreas circundantes é quase inimaginável hoje, assim como a crueldade ante os índios, e mais tarde para com os africanos que para lá foram levados contra a sua vontade.

“A busca do ouro e num segundo momento a exploração das lavras contribuíram para a integração da colónia, mudaram o seu eixo geopolítico e proporcionaram-lhe um mercado interno, mas não só isso. Também consolidaram o alargamento das fronteiras, iniciado no século XVII com a expansão pecuária. Quando o rush tomou o rumo do Oeste paulista e avançou por Goiás, Mato Grosso e Rondónia, o que aconteceria na prática era a invasão do território espanhol — mais uma vez, paulistas e portugueses mandavam às favas o Tratado de Tordesilhas… O Brasil triplicou de tamanho. Graças em parte aos esforços da corrida ao ouro as fronteiras brasileiras somariam 8,5 milhões de quilómetros quadrados, território 15 vezes maior do que o da França, 17 vezes o da Espanha e 93 vezes o de Portugal. No futuro, apenas quatro países teriam mais terras do que o Brasil: Canadá, China, Estados Unidos e Rússia”.

Raramente os intelectuais brasileiros reconhecem — ao contrário de Lucas Figueiredo aqui – – esta força lusa e luso-brasileira na construção definitiva do seu país, mesmo que tenha levado mais de um século após o descobrimento para o arranque definitivo na consolidação das suas outras comunidades fora do litoral, e a consequente definição das suas largas fronteiras. Embrenham-se, alguns, em comparações forçadas com a colonização e fundação dos Estados Unidos, falam como se um povo fosse superior a outro, muitas vezes chegando a considerações espúrias. Por que não estabelecem paralelos com o sul americano, que mais em comum teve com o seu país, o latifúndio e a economia esclavagista, onde sobressaem em alto muitas das virtudes portuguesas no Brasil? Será só uma questão de “bandeirantes e pioneiros”, narrativa em que uns só trabalhavam a terra e outros mais não faziam do que perpetuar a aventura exploratória?

A Última Pepita: Os Portugueses e a Corrida ao Ouro do Brasil é essa lúcida e inquietante história. Não poupa ninguém, nem portugueses nem brasileiros. A verdade ou o questionamento de cada palavra aqui leva-nos ao que um livro nos deve levar sempre: rever a história e provocar o pensamento. A maior lição é que nos entristece com a força da sua ironia: nada ou pouco mudou na terra lusitana europeia, ou Brasil, adicione-se — o esbanjamento das nossas elites cresceu ainda mais,são eles que sempre viveram para além das nossas possibilidades. A epígrafe acima aplica-se à nossa história antes e depois de século XIX, nessa aflitiva continuidade ainda sem resolução à vista.

Deixe um comentário

Arquivado em Livro-reportagem, Lucas na mídia

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s