Para sua estreia no Brasil, no ano passado, a revista GQ pediu a mim que fizesse uma reportagem especial. Por sorte, eu tinha uma pauta já em andamento: a história de como a ditadura, no início dos anos 1970, a fim de combater a Guerrilha do Araguaia, havia transformado pacatos índios da Amazônia em mercenários.
Eu tinha uma prova incontestável da operação do Exército, uma mensagem de e-mail de um ex-oficial (na reportagem, explico o que é), mas faltava ainda falar com os índios.
Depois de negociar minha entrada na tribo e arrumar um tradutor de akwáwa (ramo do tupi-guarani), parti para lá acompanhado do brilhante repórter-fotográfico Daniel Kfouri. Passamos alguns dias conversando com os índios da aldeia, trançando de um lado a outro da Transamazônica.
Num dia, demoramos mais que o recomendável na aldeia e voltamos para a cidade já de noite. Os índios nos avisaram que a estrada era perigosa e os assaltos eram frequentes. Como não recebemos convite para pernoitar na aldeia, o jeito foi encarar a Transamazônica de noite.
No caminho, porém, nos deparamos com um caminhão parado, com os faróis acesos, bem no meio da estrada. Parei o carro a cerca de 500 metros. Eu e Daniel ficamos observando, mas nada acontecia. Para nós, aquilo cheirava à emboscada. Decidimos então tomar o rumo contrário da estrada, deserta àquela altura da noite.
Dali a pouco, um carro nos ultrapassou a toda velocidade (nem precisa dizer que nossos corações quase saíram pela boca). De novo, demos meia volta e retomamos nosso rumo original. Chegando mais perto do caminhão suspeito, descobrimos que não era cilada. O caminhão simplesmente havia atolado na rodovia, que apesar de asfaltada tinha buracos onde cabia um fusca inteiro.
Nosso medo nos fez rodar uns 50 quilômetros para nada.
A seguida, a reportagem.
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Lucas Figueiredo, para a GQ (abril-2011)
Sob um céu grande angular de nuvens pesadas, o território brasileiro dá um nó – o Norte se encontra com o Nordeste; a Amazônia lambe o Cerrado e três Estados dividem fronteiras (Pará, Maranhão e Tocantins). Talvez poucos lugares do país sejam tão indicados para guardar um segredo como o que ali foi enterrado. Naquele rincão perdido, conhecido como Bico do Papagaio, quatro décadas atrás, teve lugar um dos episódios mais obscuros da história do Brasil: a transformação de índios em mercenários de guerra do Exército para combater a Guerrilha do Araguaia. Agora, o segredo acabou.
Em quatro meses de investigação, GQ reuniu provas que mostram que, no início dos anos 1970, no governo do general-ditador Emílio Garrastazu Médici, a força terrestre fez de pacíficos índios Aikewara – da aldeia Suruí Sororó, no sudeste do Pará – máquinas de caçar e matar homens. Um militar da reserva que participou das operações afirma que, na caçada humana, os índios feitos mercenários não se limitaram a matar. Cortaram cabeças. Era a prova que o Exército exigia do dever cumprido.
Hoje, para chegar à aldeia Suruí Sororó é necessário disposição e paciência. Do aeroporto de Marabá (Pará) – também conhecida como Marabala por causa de seus altos índices de violência com arma de fogo – o carro alugado saltita em zig zag pela Transamazônica, levando a mim e ao fotógrafo e tentando sem muito sucesso evitar as crateras. Quarenta e cinco quilômetros adiante, viramos à direita e pegamos a BR-153, antiga OP-2, construída na época da guerrilha para facilitar a internação de tropas na região. A BR-153, uma via de pistas simples sem acostamento, consegue ser ainda pior que a Transamazônica. A cena é pouco crível, mas real: caminhões atolam no asfalto. Logo à frente, surge São Domingos do Araguaia, uma cidade com pequenas casas de madeira, tristes e feias, muito parecidas com as dos cenários de filmes do velho oeste americano. Mais 50 quilômetros adiante e finalmente alcançamos a entrada da Reserva Indígena Suruí Sororó.
Na aldeia a recepção é tensa. Os Aikewara já sabem qual é o assunto que me traz até lá. Sou conduzido à tenda central da aldeia, a taquapucu, onde, estirados em redes ou sentados em grandes bancos de madeira, cerca de quarenta índios me esperam. São crianças, algumas de colo, jovens e adultos. Entre eles, idosos que, suponho, talvez tenham testemunhado a guerrilha. Mais tarde eu saberia: sob a sombra da taquapucu estavam os sete sobreviventes dos 11 índios feitos mercenários pelo Exército Brasileiro.
Um dos líderes da aldeia, entre gentil e imperial, sugere que eu me sente no banco de madeira à minha frente. Seu nome é Ikatu Suruí (para efeito legal, todos os índios têm o nome da aldeia como sobrenome). Ele tem 34 anos e é o Aikewara mais forte e alto do grupo. Ikatu é amável, o que não o impede de ser firme e extremamente seguro de sua autoridade. É ele quem comanda um quase interrogatório com a palavra franqueada aos demais índios – e muitos perguntam, de forma direta, quando falam português ou, no caso dos monoglotas em akwáwa (ramo do tupi-guarani), por intermédio do intérprete: “O que vem fazer aqui?”, “Por que quer saber as histórias dos índios?”, “Para quem vai contar as histórias os índios?”
A nova geração se empenha em evitar que os mais velhos assumam ter cometido atos de violência. “Os velhinhos são muito inocentes. Nós, que somos novos, respondemos por eles”, assume Ikatu, que grudaria em mim nos dois dias seguintes. O tempo passa e aos poucos, ainda que desconfiados, os índios param de perguntar e começam a responder. Porém, qualquer questão dirigida a um dos sete Aikewara feitos mercenários que envolva as palavras combate, prisioneiro, morto ou corpo é cortada por Ikatu, que nega ter havido confronto direto entre índios e guerrilheiros. No segundo dia na aldeia, entretanto, nos raros momentos em que Ikatu e outros Aikewara jovens se afastam, os mais velhos se aproximam para contar suas histórias.
Desde tempos imemoriais, a vida dos Aikewara é um constante fugir. Primeiro, fugiam da perseguição de índios inimigos. Depois, fugiam de massacres praticados pelos brancos e do risco de extinção. Agora, tentam fugir do passado.
Foi correndo de seus primeiros algozes, os Kayapó Xikrin, no início do século XX, que algumas centenas de Aikewara chegaram à área que ocupam hoje. Era uma gleba de mata tropical fechada, com poucos rios, mas caça abundante. Por ali ficaram. Com a palha das palmeiras, construíram ocas redondas, e com o arco e flecha caçaram macacos, veados, caititus (animal parecido com o javali), tatus e cotias. A ração diária era complementada com o que conseguiam coletar (jabutis, peixes, castanha) e plantar (mandioca, batata doce, milho e banana). Eles não contavam a idade porque isso não era importante, e na aldeia não existia disputa de poder, já que os caciques se sucediam em linha hereditária.
Pela descrição, pode parecer que eram prósperos e felizes, o que não é verdade. Tudo indicava que o destino da tribo era desaparecer.
Como não tinham meios de resistir aos ataques dos Kayapó Xikrin, os Aikewara cultivavam uma tradição terrível: para facilitar as fugas, evitam que as mulheres tivessem dois filhos de colo simultaneamente, e para isso recorriam a meios abortivos ou mesmo ao infanticídio.
O primeiro contato com os Kamará (homem branco) se deu em 1953. Começaram trocando presentes, mas em pouco tempo estavam morrendo pelo chumbo das armas de fogo ou pelas doenças (como varíola e gripe) trazidas por fazendeiros e castanheiros. O impacto do contato com o homem branco, aliado à tradição do controle radical da prole, fez com que os Aikewara entrassem em rota de extinção. Em 1961, sobravam na aldeia apenas 34 índios.
Anos mais tarde, a partir de 1966, os Aikewara começaram a ganhar novos vizinhos: militantes do então clandestino Partido Comunista do Brasil (PCdoB) que chegavam àquele fim de mundo com a idéia de promover uma revolução armada no país. Era a Guerrilha do Araguaia.
Os índios não tinham a menor idéia do que queriam aqueles homens e mulheres que os habitantes locais chamavam de “paulistas”. “Índio não sabia nada”, explica, num precário português, Warikasú, um dos Aikewara feitos mercenários pelo Exército.
Seis anos depois da chegada dos guerrilheiros, vieram os militares com a missão de destruir o foco de insurreição. Eram 3.400 soldados contra 76 guerrilheiros (69 já estavam no local e sete, a caminho). Ou seja, uma vantagem para as Forças Armadas de 45 para um – vantagem, aliás, ilusória, já que os insurretos dominavam o terreno e os militares, não. Resultado: sem conseguir abafar a guerrilha, a campanha do Exército empacou. Warani, outro ex-mercenário da aldeia, um velho de cabelos brancos na altura dos ombros, encena a desorientação dos militares ao entrar na selva. “Soldado não sabe andar na mata”, sentencia. Foi assim, a partir de uma dificuldade operacional (leia-se, falta de treinamento adequado da tropa para aquele tipo específico de terreno), que surgiu no Exército a idéia de usar os índios para guiar os soldados e, em alguns casos, para assumir os combates. Começava a descida dos Aikewara ao inferno do homem branco.
Na tenda central da aldeia, Tawé se aproxima a passos rápidos, pára abruptamente diante de mim e começa a falar em tom grave. Ele parece ser um dos mais jovens índios feitos mercenários, arregimentado pelo Exército ainda na adolescência. Como nenhum dos índios da geração mais antiga sabe a própria idade, é difícil imaginar com precisão quantos anos aqueles homens à minha frente têm.
Tawé conta que, depois de invadir e tomar a aldeia, os militares semearam o pânico entre os índios. Começaram por queimar as roças e impedir os Aikewara de caçar. “Amarraram o índio e bateram muito, apontaram metralhadora, estupraram mulher do índio”, relata exaltado. “Um dia, soldado pegou Tawé e pai de Tawé [Kuimuá, já falecido] e levou de helicóptero para a mata. Índio tinha muito medo e pensava que tinha feito alguma coisa errada.” Só quando chegaram à selva fechada, Tawé, que na época já falava um pouco de português, soube o motivo do sequestro. “Soldado mostrou fotografia do povo da mata [os guerrilheiros] e disse para índio caçar”. Nos quatro dias em que ficaram na selva, Tawé e Kuimuá não puderam acender fogueiras para cozinhar ou para se aquecer porque corriam o risco de virar alvo dos guerrilheiros. Para sobreviver, comeram jabá cru e alimentos enlatados frios, fornecidos pelos militares.
Umassu, um Aikewara de gestos calmos e sorriso doce, diz que também foi levado para a mata de helicóptero, primeiro para servir de guia dos soldados, depois para “caçar o povo da mata”. Com a ajuda de um intérprete, Warini – aparentemente, o mais velho da aldeia, como demonstram os vincos profundos que cobrem todo seu rosto – conta que quase foi atingido num tiroteio entre soldados e guerrilheiros. Viveu para relatar a história, mas ficou surdo, segundo ele, por causa dos estampidos. Já Warani, o mais bem humorado da aldeia, pára por um momento de rir e de fazer rir e, em português precário, descreve como os soldados o enganaram. “Levaram índio para a mata dizendo que era para caçar macacos e caititus. Mentira! Era para caçar terrorista”, diz ele, usando o termo que aprendeu com os militares. Com sua voz firme e excepcionalmente lenta para um Aikewara, Waiwera narra que, ainda adolescente, foi levado à Serra das Andorinhas, próxima da aldeia, por um homem identificado como cabo Lima, para “caçar guerrilheiros”. Com o dorso nu pintado com pontos pretos a imitar o rasto de um caititu, Massara descreve, com a ajuda do tradutor, que durante “a guerra” ele foi obrigado a passar muitos dias na mata com fome.
Quando pergunto a qualquer um dos ex-mercenários Aikewara como eles lutaram e se no confronto houve vítimas, o clima pesa em torno de nós e os índios se mostram extremamente perturbados. Desviando o olhar, não param de repetir: “Índio tinha muito medo”. Eles admitem ter caçado os militantes do PCdoB – Umassu conta ter presenciado a prisão de Mariadina (Dinaelza Santana Coqueiro), cuja ossada continua desaparecida. E admitem ter visto corpos – Tawé diz que viu cadáveres, e Warini, que presenciou enterros à beira de uma estrada. Mas os Aikewara nada falam sobre as mortes. É como se existisse apenas o antes e o depois, e não o momento em que as vidas foram tiradas.
Para decifrar o limite dos índios, é preciso investigar outra ponta da história, a dos militares. Uma luz surge num documento inédito e de grande valor histórico produzido pelo coronel da reserva Aluisio Madruga de Moura e Souza, veterano dos combates no Araguaia. Num e-mail enviado a um amigo, também coronel da reserva, no dia 6 de abril de 2007, Madruga atesta que os índios de fato participaram da terceira e última campanha militar no Araguaia, a Operação Marajoara. Na mensagem, depois de tecer uma série de comentários sobre os combates, o coronel Madruga faz uma afirmação grave: “O único caso de cabeças cortadas – duas – que tenho conhecimento foi protagonizado pelos índios [da aldeia] Suruí já mais para o final da Operação Marajoara (…)”. Madruga diz também que o caso ficou “restrito” e que mesmo ele desconhece os detalhes.
É a primeira vez que um oficial que serviu no Araguaia atesta no papel que o Exército cooptou índios para a campanha contra a guerrilha. Mais: é a primeira vez que um oficial afirma, por escrito, que, ao cumprir sua missão, os mercenários mutilaram corpos.
Não há porque duvidar da autenticidade do e-mail. Primeiro, porque o endereço do remetente é o mesmo que Madruga usa para vender, pela internet, os livros de sua autoria sobre a luta armada. Segundo porque quem repassou a cópia da mensagem a GQ foi seu destinatário, que datou e assinou o papel de próprio punho.
O coronel Madruga, um carioca de cabelo cuidadosamente penteado e bigode triangular, não é um militar de passado ordinário na caserna. Ele serviu por 35 anos em algumas das instituições mais barra pesada da ditadura – DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna), SNI (Serviço Nacional de Informações) e CIE (Centro de Informações do Exército). Em 1973, sua experiência na caça a comunistas o levou ao Araguaia. Naquele ano, por seis meses, sob a patente de capitão e o codinome doutor Melo, Madruga participou do comando da Operação Sucuri, que levantou dados sobre a população local (como o grau de simpatia de cada morador em relação à guerrilha) e desvendou o esquema dos insurretos (localização, armamentos e estrutura). Na fase seguinte da campanha, com as informações obtidas pela Sucuri e a ajuda de mercenários (índios e brancos), o Exército dizimou, calcula-se, 56 guerrilheiros.
Hoje, Madruga prefere se calar. “Faz tempo que por decisão pessoal decidi esquecer o assunto Guerrilha do Araguaia”, diz ele. No livro que escreveu 29 anos depois da luta (Guerrilha do Araguaia – Revanchismo – a Grande Verdade), o coronel reconhece que a força terrestre contratou mateiros (homens que conhecem a mata profundamente) para servirem de guias das tropas. Nada diz, porém, sobre os Aikewara. Já no e-mail, ao citar as decapitações, ele insinua que a conduta teria sido de exclusiva responsabilidade dos índios. “(…) [O corte das cabeças de guerrilheiros] causou constrangimento na maioria [dos militares]. Mas índio é índio”, escreveu o coronel.
A suposta vexação dos militares em relação à mutilação de corpos não encontra sustentação na realidade. Uma prova viva disso se acha em Palestina, minúsculo e sombrio município do Pará, distante cerca de 120 quilômetros da aldeia Surui Sororó. Lá, num pequeno sítio com bananeiras, mangueiras e pés de milho, vive Sinésio Martins Ribeiro, de 86 anos, mateiro que serviu de guia para o Exército no Araguaia. Enquanto veste uma camisa para cobrir o dorso com a pele trincada de sol, ele dá um testemunho que ajuda a colocar mais uma peça no quebra-cabeça.
Ribeiro morava em São Geraldo do Araguaia, cidade paraense localizada na divisa com o atual Estado do Tocantins, quando, no final de 1973, o Exército chegou por lá arrepiando. “Queimaram nossas roças e mandaram a gente cortar os pés de banana. O Exército acabou com tudo”, relata. A estratégia das Forças Armadas era estabelecer o controle absoluto sobre a população local, por intermédio do terror, e impedi-la de continuar ajudando os guerrilheiros com alimentos, como vinha acontecendo havia anos. Ribeiro e cerca de 70 moradores da região, todos homens adultos, foram presos e levados para uma base militar montada em Xambioá, outro município do Bico do Papagaio. De acordo com o mateiro, nos dias que se seguiram, os presos foram espancados e alguns deles, obrigados a se sentar em formigueiros ou confinados em buracos escavados no chão e tampados com arame farpado, ao estilo da Guerra do Vietnã. Outros foram mortos. “Mataram muita gente sem necessidade”, diz ele.
As sessões de tortura e maus tratos eram intercaladas com triagens que visavam identificar os melhores mateiros da região – melhores de mata e melhores de tiro. Ribeiro se destacou. Depois de passar dois dias limpando armas do Exército e de mostrar aos militares a diferença de um bagaço de fruta comida por um humano, um boi e uma pipira (ave), ele foi selecionado. É Ribeiro quem conta: “O povo da mata estava isolado, ninguém sabia notícia deles. Aí, [os militares] me chamaram e disseram para eu descobrir onde eles [os guerrilheiros] estavam.”
Para sair dos suplícios da cadeia militar, Ribeiro aceitou a missão. Arregimentou então outros dois experientes mateiros, Iomar Galego e Raimundo Baixinho, e saiu à caça dos guerrilheiros levando como arma apenas a própria espingarda. Antes de partir, o grupo assistiu uma preleção. “Eles [os militares] davam um saco de plástico branco forte e diziam: ‘Derruba o papagaio e tira o bico dele’. Papagaio era como eles chamavam os guerrilheiros, e bico era a cabeça”, relata Ribeiro.
Sentado numa cadeira armada à sombra de uma árvore, o mateiro desenha no chão de terra de seu quintal, com os dedos, para melhor reconstituir a primeira operação do Exército da qual participou. Era final de 1973. Ele e seus companheiros varejavam um local de selva fechada, conhecido como Grota do Cristal, próximo ao município de São Raimundo do Araguaia (PA), quando avistaram três guerrilheiros. Sem serem notados pelos militantes do PCdoB, os mercenários atiraram. Dois insurretos conseguiram fugir, mas Arildo Aírton Valadão, o Ari, ex-estudante de física de 25 anos, caiu morto. No relato, diferentemente dos Aikewara, Ribeiro vai até o fim. “Tiramos a cartucheira e o relógio do Ari. Aí eu peguei meu facão e cortei a cabeça dele. Foi rápido”, conta o mateiro, sem demonstrar qualquer sinal de arrependimento ou orgulho. “Não é difícil, mas tem de arrancar os ossos.” O corpo mutilado foi deixado na Grota do Cristal; a cabeça, levada para uma base do Exército instalada próxima à aldeia Suruí Sororó e entregue a um militar conhecido como dr. César, provavelmente um codinome. “Era a ordem. Não podíamos passar por cima”, explica o mateiro.
Logo depois da operação que resultou na morte de Ari, a primeira realizada exclusivamente por não militares, o Exército soltou todos os moradores da região que ainda se encontravam presos. O tratamento dispensado pelo Exército à população local então mudou – ou, nas palavras de Ribeiro, “amoderou o sofrimento”. O mateiro, na verdade, passou a ser tratado como herói, tanto pela população local, que o via como responsável pela liberdade reconquistada, como pelos militares, que reconheceram nele uma expertise que não possuíam. “Eu cresci lá dentro [no Exército]. Passei a comer na mesa dos militares e tinha intimidade de falar com qualquer comandante”, descreve Ribeiro, agora sim com orgulho.
Diante do resultado considerado satisfatório na ação que terminou com a morte e degola de Ari, a força terrestre formou outros grupos de mercenários (mateiros e índios) e os enviou à mata. “Cortaram cabeças demais”, conta Ribeiro.
Numa dessas novas investidas, o mateiro confirma ter lutado ao lado de índios da aldeia Suruí Sororó. “Diziam que os índios conseguiam rastrear um veado num lajedo. Então, a pedido do Exército, o chefe deles [dos Aikewara] cedeu dois índios”. Ribeiro relata que, nos últimos dias de 1973, retornou à mata com esses dois índios, acompanhado de outros mateiros e alguns militares. Rastreia daqui, procura de lá, e mais uma vez Ribeiro se viu diante dos guerrilheiros, num confronto de vida e morte. “O povo da mata atirou primeiro, de mosquetão, e nós atiramos de volta”, narra ele. “Os índios ficaram assombrados e correram para dentro da mata, chorando. Eles eram frouxos.” (Possivelmente, os índios eram Tawé e Kuimuá, filho e pai que foram levados em pânico à mata. Na aldeia, Tawé foi o único a confirmar ter conhecido Ribeiro.) Terminado o tiroteio, ainda de acordo com o Ribeiro, um militar rastejou até a frente inimiga, encontrando o corpo de Jaime Petit da Silva, ex-professor de 28 anos. “O Jaime estava todo esbagaçado de tiro de FAL (Fuzil Automático Leve, arma utilizada apenas pelos militares)”, descreve o mateiro. Segundo Ribeiro, ele e seus companheiros decapitaram o guerrilheiro.
É verdade que, antes de aderir ao Exército, índios e mateiros foram torturados pelos militares. Mas é verdade também que os mercenários receberam recompensas pelos guerrilheiros abatidos. Quem afirma é Hugo Studart, historiador e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB), observador independente do Grupo de Trabalho Tocantins (GTT), criado pelo Ministério da Defesa para buscar os corpos dos guerrilheiros, e autor do livro A Lei da Selva: Estratégias, Imaginário e Discurso dos Militares na Guerrilha do Araguaia (Geração Editorial). “A tabela de preços, de 5 mil a 15 mil cruzeiros, variava de acordo com a importância e a localização do alvo”, diz o historiador, que prepara um segundo livro sobre a guerrilha. ”Os mateiros cortaram sete ou oito cabeças. Os índios mataram outros tantos, inclusive com decapitados. Ambos, mateiros e índios, foram obrigados a isso para sobreviver. Deve haver até nove corpos de guerrilheiros enterrados em algum ponto da reserva Suruí Sororó”, sustenta Studart.
Outra observadora do GTT que está em contato com os Aikewara, Maria Mercês Pinto de Castro, afirma que, por falta de preparo para o combate na selva, o Exército de fato terceirizou a luta no Araguaia, obrigando índios e mateiros a matar e a mutilar os guerrilheiros. “Todos os homens da região acima de 19 anos, índios e brancos, foram recrutados”, afirma ela. Maria Mercês viaja ao Araguaia desde 1979 a procura da ossada do irmão, o guerrilheiro Antônio Theodoro de Castro (Raul), ex-estudante de farmácia morto aos 28 anos. Hoje, ela auxilia os Aikewara nos processos que eles movem na Comissão da Anistia para receber, na condição de vítimas do regime militar, o benefício financeiro estabelecido pela lei.
Neste trecho da nossa História, a verdade é – e sempre será – perturbadora. Do mesmo modo que é correto dizer que os índios foram vítimas do Exército, é correto também admitir que foi a adesão dos índios à força terrestre que “assegurou-lhes a sobrevivência”. Quem diz isso é Roque de Barros Laraia, professor da UnB e ex-presidente da Associação Brasileira de Antropologia, maior especialista em índios Aikewara no Brasil, com 40 anos de estudos de campo na tribo.
De fato, o fim das operações militares no Araguaia, no início de 1975, coincidiu com uma melhora nas condições de vida dos índios. Em 1977, ainda na ditadura, finalmente a terra dos Aikewara foi demarcada pelo governo federal, alcançando 26,2 mil hectares (o equivalente a 26 mil campos de futebol ou ainda 5% da área de Brasília). É inegável que a posse definitiva da terra e a proteção do Estado trouxe para os índios uma estabilidade até então inédita. Dali em diante, mesmo estando no centro de uma região que crescia com desordem e violência, a aldeia sempre foi um oásis.
Nas duas décadas seguintes, num raio de 150 quilômetros a partir da reserva Suruí Sororó, a terra tremeu com quatro eventos, todos ocorridos no Pará: a construção da maior hidrelétrica 100% brasileira, Tucuruí (1975-84); a invasão de Serra Pelada por 80 mil garimpeiros (1980-92); o início da exploração da maior reserva de mineiro de ferro do mundo, Carajás (1980); e o massacre de 19 sem-terra em Eldorado de Carajás, o pior conflito no campo ocorrido no Brasil (1996). Na região que cerca a aldeia, é possível encontrar hoje, sem grande esforço, quase todos os sinônimos de tragédia social: altos índices de violência, prostituição infantil, extração ilegal de madeira, garimpo, mineração, conflitos por disputa de terra, desmatamento, queimadas, tráfico de drogas, tráfico de armas etc. Não se pode dizer que os Aikewara estejam completamente imunes a tudo isso, mas a vida na aldeia segue tranquila.
Em sua porção de terra, última área de mata nativa da região, os índios têm escola bilíngue, posto de saúde, água encanada e eletricidade. Já são trinta as casas de alvenaria, todas com puxadinho (uma oca de palha e madeira).
De acordo com levantamento feito pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), a aldeia abrigava 330 índios no ano passado. Hoje são aproximadamente 400, segundo os próprios Aikewara. Com o fim da disputa por terra com os Kayapó Xicrin, a tradição de evitar o segundo filho de colo e o infanticídio foram abolidos. As crianças são muitas e brincam descalças na terra fingindo serem onças.
Entre crianças, jovens e adultos, antigos hábitos permanecem inalterados: eles ainda pintam o corpo com tinta de jenipapo e urucum e dançam o Saporahái, evocando seu herói mítico, Mahyra, pai do sol e da lua. E, entre eles, falam preferencialmente o tupi-guarani.
As histórias que os velhos gostam de contar não têm guerrilheiros nem soldados. Só animais que fazem uma grande escada com as flechas dos índios para poder dançar no céu.
Não é difícil entender por que os índios preferem manter no passado o que no passado aconteceu. Mas para uma instituição como as Forças Armadas a coisa não é tão simples assim. Jorge Zaverucha, cientista político e coordenador do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), defende que a cooptação de índios e de mateiros pelo Exército seja investigada e seus autores, punidos. “Mesmo nas guerras há regras, como a Convenção de Genebra. Mutilar é crime, pois o inimigo já está derrotado, no caso morto.”
Que matéria lamentável. Preconceituosa ao extremo. Desde o começo do texto você revela o incômodo em estar ali, como se fosse um grande herói que se sacrifica para descobrir a verdade no meio dos bárbaros. Uma versão fantasiosa que qualquer pessoa que conhece minimamente os aikewara não consegue acreditar. Até mesmo na tradução das falas você demonstra a visão estereotipada que tem sobre os índios, reproduzindo o que eles disseram como se fossem versões ridículas de piadas sobre indígenas: “Índio fez isso”, “índio fez aquilo”, destacando o “pobre português” (como se eles tivessem a obrigação de falar a sua língua para abastecer essa matéria que os difama com mentiras). Me impressiona que você tenha trabalhado na Comissão Nacional da Verdade e não tenha percebido que não se deve acreditar naquilo que dizem os coronéis do DOI, em especial quando o objetivo é livrar a própria cara do Exército e responsabilizar terceiros pelos desaparecimentos. Com base nessa frágil evidência e numa seleção aleatória de frases de “super especialistas” (como você faz questão de destacar, com intuito de conferir alguma credibilidade a tanta especulação falaciosa), você acusa taxativamente os índios de “mercenários” que compuseram uma “máquina de guerra destinada a cortar cabeças”. Você deveria ter mais responsabilidade no seu trabalho, meu caro. Uma vergonha essa reportagem.
sou kaypy estudo em marabá universidade UFPA a guerrilha trouxe muitas conseguencias não apagarão tão fácil na memoria do nosso povo….
Incrivel essa história eu convivi muito tempo com esse povo quando estive no segundo bec, foi nós que construimos um aerodromo para a aldeia e a estrada de acesso a aldeia na decada de 80 e nunca eles mencionaram isso, eles são um povo maravilhoso eu tenho saudades deles, inclusive o MASSU e o indio Tibacu.
sou um aykewara ,e vi seu documentario , é uma historia que machuca muito as lembrancas dos aykewaras. meu povo tenta ocultar essa historia para nos mais novos pois e´de muita tristeza e sofrimento ,nao adianta esconder pois foi um fato q realmente aconteceu .hoje tentamos levar isso com sorrisos,,como uma das historias q noosso povo vivenciou.sou YRYKWA SURUI , tenho 18 anos ,vivo na cidade pois estudo . minha meta e ajudarmeu povo futuramente .sofro muito ,ja que nao vivo onde deveria viver mas é um sacrificio q vale a pena pois luto pelo meu povo, os aykewaras sao esquecidos ,mesmo q tiveram uma paticipacao direta em um pedaco tramatico da historia brasileira .nao quero ver mais o meu povo sofrer ,quero ver a alegria e a uniao reinar na terra dos surui aykewara ,rspeitamos o homem nao indigena ,mais nao tememos estes .muito obrigadopor levar essa historia a todos .muitos deven saber ,a injustica q meu povo viveu!!!!!!!!!!!!
A verdade liberta, sempre, messmo que seja triste. Seu povo sofreu muitas injustiças, sobretudo na ditadura. Mas isso acabou. E a verdade libertou seu povo.
Seu sofrimento pessoal será recompensado, tenho certeza, quando colocar tudo o que aprendeu a serviço do seu povo. Como aliás você faz agora ao enviar esta mensagem.
Desejo-lhe muita força para continuar a caminhada.
Um grande abraço.
Você sabe dessa menção a sua reportagem, crítica de ser tendenciosa? Este é o link, de um trabalho acadêmico de comunicação. http://www.unicentro.br/redemc/2011/conteudo/alaic_artigos/Alaic_Santos_Neves.pdf
Sou professor de história e estudante de ciências sociais na UFT onde pesquiso a temática indígena, estou me interessando cada vez mais sobre a temática dos índios e suas relações com o exército brasileiro, estou construindo um artigo. Se puder colaborar, fico muito grato, queria saber sua posição quanto a crítica de “tendenciosa” sobre sua matéria, confesso que deveria ter mais “relativização” ao definir os Aikewára de mercenários, pois vejo contradição de termo e alcunha aos indígenas que foram forçados, doutrinados a tal violência, o que pode ter deixado muitas sequelas físicas e psicológicas neles, por falar em doutrina para tortura e violência ensinada pelos militares, sabe sobre a GRIN, guarda rural indígena, formada em 69, onde recentemente veio a tona um vídeo chamado “Arara” onde índios aparecem desfilando em plena BH-MG com um individuo sendo carregado num “pau de arara”, índios estes, que ao voltarem para suas aldeias de origem, muitas no Tocantins, fardados, empoderados como guardas do exército brasileiro, cometeram inúmeros atos de violência contra seus próprios pares, irmãos de etnia?
Olá, Dhiogo
Acredito que meu trabalho possas e deva ser criticado. Tenho consciência de que cometo erros. Mas nesse caso específico, acredito que fui mal interpretado pelos autores do artigo.
Lucas