Paguei minha pena, sou um ex-criminoso

É com grande alegria que anuncio que, desde ontem, estou livre do meu crime, não devo mais nada à Justiça.

Durante quatro anos, paguei o que devia, em cash, na boca do caixa, religiosamente em dia (deveria ter pago em 8 anos e quatro meses, mas consegui quitar algumas prestações adiantado).

Livre, afinal! Tão livre quanto o ex-presidente e hoje senador Fernando Collor. Tão livre quanto todos os corruptos e corruptores do Esquema PC Farias. Tão livre quanto todos eles, com uma exceção: enquanto sou um ex-criminoso, eles são inocentes.

Para quem não conhece a história do processo e da condenação que sofri na Justiça de Alagoas, reproduzo abaixo um texto que escrevi, em junho de 2006, quando me tornei oficialmente um criminoso.

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Eu sou o criminoso do caso PC Farias

Lucas Figueiredo (junho de 2006)

O governo Fernando Collor passou à História como sinônimo de corrupção. Da eleição (1989) ao impeachment (1992), a gangue que ocupou o Poder Executivo naquele período arrecadou US$ 1 bilhão com achaques, mutretas e golpes, segundo cálculos da Polícia Federal. A máquina de roubar ficou conhecida como Esquema PC, uma referência ao nome do tesoureiro da campanha presidencial de Collor, Paulo César Farias.

Como é sabido, com exceção de PC Farias, até hoje nenhum dos integrantes daquele grupo (empresários, políticos e autoridades) foi condenado em última instância pelos crimes cometidos. Collor, por exemplo, foi absolvido de todas as acusações, incluindo a de corrupção (ele cogita se candidatar a deputado federal por Alagoas nas próximas eleições). O próprio Paulo César acabou sendo condenado por dois crimes, digamos, menores: falsidade ideológica (ele abriu contas bancárias com nomes falsos) e evasão de divisas. Só foi parar na cadeia, onde passou dois anos, porque fez a besteira de fugir do país.

O correto, portanto, seria refazer a frase da abertura deste artigo: o governo Collor passou à História como sinônimo de corrupção e também de impunidade.

E a impunidade atravessou os tempos. No dia 23 de junho de 1996, PC foi assassinado na sua casa de praia, em Maceió. O corpo do tesoureiro foi encontrado na cama, ao lado do corpo de sua namorada, Suzana Marcolino, ambos com um tiro de revólver calibre 38. Num primeiro momento, a Polícia Civil de Alagoas divulgou que Suzana teria matado PC e se suicidado. A investigação, no entanto, foi marcada pelas falhas, para dizer o mínimo.

Anos depois, pressionado pelo trabalho de investigação da imprensa, a polícia alagoana mudou sua versão do crime para duplo assassinato. Mesmo assim não foi capaz de dizer quem deu os tiros em PC e Suzana e quem mandou matá-los. Mais uma vez, os criminosos se safaram. E, ao que tudo indica, com muito dinheiro, já que a sobra do butim do Esquema PC nunca foi encontrado.

Esta é a história conhecida. Estou aqui para contar outra: eu sou o criminoso do caso PC Farias.

Comecei a escrever sobre os desmandos do governo Collor quando ainda estava na universidade. Recém-formado, fiz reportagens sobre o declínio do governo e sobre o impeachment. Em Brasília, como repórter, vi em 1994 a absolvição de Collor no Supremo Tribunal Federal. Dois anos depois, cobri em Maceió a morte de Paulo César e Suzana. O caso grudou em mim — e eu grudei no caso.

Nos quatro anos seguintes, dediquei-me a investigar as duas questões centrais do enigma PC/Collor. Ou seja, quem matou Paulo César Farias e onde foi parar o dinheiro do Esquema PC. Voltei a Maceió algumas vezes, e as pistas levantadas acabaram me levando à Itália, à Suíça, à Argentina, aos Estados Unidos e ao Uruguai.

Não fui capaz de responder integralmente os enigmas, mas considero que fiz avanços. Em 1997, por exemplo, expus as ligações do Esquema PC com o crime organizado internacional. No mesmo ano, revelei que o Ministério Público de Alagoas tinha uma gaveta cheia (e fechada) com exames feitos por peritos e legistas independentes que indicavam que PC e Suzana tinham sido mortos por uma terceira pessoa. Outros informações vieram com o tempo, como os dados das contas de PC Farias no exterior, algumas delas ativas mesmo depois de sua morte.

No meio do caminho, como era esperado, esbarrei numa pressão brutal de quem preferia o mistério à luz. Fui ameaçado de morte em Alagoas e escapei de uma arapuca em Houston (Texas), para onde fui atraído por um falso informante.

No ano 2000, o resultado da minha investigação virou um livro: Morcegos Negros: PC Farias, Collor, máfias e a história que o Brasil não conheceu, publicado pela Record. Mesmo tendo passado oito anos do impeachment de Collor e quatro da morte de PC, o livro foi muito bem aceito, vendendo 30 mil exemplares, o que lhe rendeu 14 semanas na lista dos mais vendidos de revista Veja (categoria não-ficção). E foi assim que me tornei um criminoso.

Ainda no ano 2000, o juiz de Alagoas Alberto Jorge Correia de Lima (responsável pelo caso da morte de PC e Suzana) leu Morcegos Negros e não gostou. Ele entrou com um processo por danos morais, em Alagoas, contra mim e contra a editora Record. Na ação, o juiz questionava uma única frase do livro. A frase é a seguinte: “O juiz Alberto Jorge, que só reclamava, resolveu tomar uma atitude e solicitou à Secretaria de Segurança que indicasse um novo delegado para o caso”. Segundo o entendimento do juiz, ao dizer que ele “só reclamava” eu teria afirmado que ela nada fazia. Sendo assim, por vias tortas, eu teria afirmado que ele prevaricara.

A reclamação de Alberto Jorge foi aceita por seus colegas da Justiça de Alagoas, tendo início um processo kafkiano contra mim.

No julgamento de primeira instância, o juiz que analisou o caso não ouviu as minhas testemunhas, entre elas o senador Eduardo Suplicy e o ex-juiz Walter Maierovitch. E acabou por condenar a mim e à Record a pagar 350 salários mínimos, mais custas de advogado (aproximadamente R$ 200 mil, em valores corrigidos, um valor altíssimo para ações dessa natureza).

Tentei recorrer, mas na segunda instância Kafka voltou a atacar. O Tribunal de Justiça de Alagoas confirmou a condenação, mas, descumprindo uma norma sagrada da Justiça, não realizou corretamente a publicação do acórdão, deixando de intimar meu advogado local. Ou seja, fui condenado novamente, e dessa vez não fui avisado.

Morcegos negros: a prova do crime

Ao verificar a falha, no dia 3 de agosto de 2004, entrei com uma petição no TJ de Alagoas comunicando o erro. Na petição, pedi a republicação do acórdão (ou seja, da sentença de condenação em segunda instância), a fim de que fosse aberto o prazo para eu recorrer da decisão. A petição foi recebida pelo tribunal, conforme comprovam duas fontes diferentes: o protocolo do TJ de Alagoas em meu poder e o site do tribunal ( www.tj.al.gov.br ), na seção de consulta a processos.

Além de entrar com a petição, enviei meu advogado, Fernando Quintino, a Maceió. Em audiência com Quintino, o assessor de gabinete do TJ de Alagoas reconheceu o erro e afirmou que a sentença seria então publicada, reabrindo o prazo para que eu recorresse ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília. Passados quase dois anos, no entanto, o acórdão não foi republicado.

Em abril passado, meu advogado foi pessoalmente verificar o motivo de tanta demora. Foi quando tomei conhecimento de que minha petição simplesmente havia desaparecido do processo. Quintino folheou todo o processo e também não encontrou nenhum oficio solicitando ao tribunal a republicação do acórdão. Estava assim concluído Der Process: eu e Record éramos culpados.

Sim, eu me sinto perplexo, indignado e impotente diante do ocorrido. Mas ainda assim vejo um fio de coerência em toda essa história: se a gangue que se formou sob a sombra do governo Fernando Collor é inocente, eu só poderia estar mesmo do outro lado.

(Este texto foi reproduzido na íntegra no livro Código da Vida, do ex-ministro Saulo Ramos, na revista Caros Amigos e em diversos sites, como Observatório da Imprensa e Consultor Jurídico. A todos, agradeço penhoradamente o apoio.)

Leia também o post Quem matou PC Farias? Crônica de uma absolvição anunciada

22 Comentários

Arquivado em Colarinho branco, Crime organizado, Escritos de Lucas na imprensa, Justiça, Política

22 Respostas para “Paguei minha pena, sou um ex-criminoso

  1. Antes de sua morte, Suzana Marcolino, segundo noticiários da época, visitou um dentista em São Paulo, comentou receio de ser assassinada. Onde está este dentista? Ainda está vivo?
    .

  2. Edgard Brandão Jr

    Caro Lucas:
    Surpreso e estarrecido.
    Por ser da cidade de Santo André-SP e ter atuado em administrações públicas diversas por mais de 40 anos li com bastante interesse o livro “Morcegos Negros”.
    Meu exemplar acabou se extraviando depois de passara de mãos em mãos de amigos.
    Quero parabenizá-lo pela coragem.
    Abs Edgard Brandão Jr
    Facebook: Edgard Brandão Jr

  3. Vera Maria

    Caro Lucas,

    Como leitora do seu blog, minha solidariedade pelo que vc passou. Qualquer um que le este descalabro, sente-se perplexo pelo desfecho. Sou completamente leiga no assunto, mas nao eh possivel levar este caso a corregedoria, a investigacao do CNJ, a Ministra Calmon?

  4. Caro Lucas,

    minha solidariedade a você. O caso é vergonhoso para a Justiça. Seu profissionalismo e competências, honrosos. Abraço.

    Lailton Costa

  5. Marcelo

    Espero nunca depender da justiça brasileira.
    (Ou, na pior das hipóteses, que um dia eu tenha o dinheiro/poder suficiente para acreditar nela.)

  6. é coisa pouca perto do seu perrengue, conto só de curiosidade: uma avioneta pousou num aeroporto nos cafundós do Pará. A PF, que a rastreava por satélite, interceptou, prendeu piloto e co-piloto (ambos condenados anteriormente por tráfico) achou cocaína no avião e balas de AK-47. Faziam a rota Farc-sabe Deus que favela no Brasil. Os advogados não pediram habeas corpus, mas o juiz, por seu próprio querer, concedeu o benefício que colocou os fulanos em liberdade e ainda deu um pito no causídico por não fazê-lo. Narrei a história em Veja, como estava contada no relatório da PF. O Juiz me processou na esfera crime e cível e encheu o saco para valer. E a avioneta continuou seus passeios, pelo que me disse a fonte na PF. Parabéns pela soltura.

    • Caro
      A chapa é quente, e o bagulho, cada vez mais doido. Hoje, tenho mais medo de oficial de Justiça do que de matador de aluguel (estes podem errar o alvo). Grande abraço.
      P.S. Viu que o breve morador do Pavilhão virou autoridades?
      Abs.
      Lucas

      • Anônimo

        Uai, não vi. Morador do Pavilhão virando autoridade eleva toda a categoria. Já penso até em pedir aposentadoria esopecial sem lei com base em que

      • Nelson Breve, o novo presidente da EBC. Também passou pelo “Pavilhão 9”, a casa mais doida de Brasília.

  7. Cristiane Pereira

    Lucas, receba minha solidariedade pela sua “liberdade” e meus parabéns pela sua coragem – que sempre acompanhei e admirei pela imprensa.
    E é como vc disse: se Collor e sua turma são inocentes, claro, vc é culpado, jamais estariam do mesmo lado.

  8. Juliana Hashimoto

    Eu não posso acreditar que essa história (processual) possa terminar assim!! É revoltante demais!!

  9. MARCELO

    caro lucas ! parabéns pela sua postura. voçê realmente é diferenciado neste mundo de imprensa manipulada que temos hoje em dia. como leitor permanente de seus textos não posso deixar de dizer. estes anos de desgoverno do PSDB em mg dão um tremendo livro. para o deleite de seus seguidores, pense no assunto. abraços, marcelo.

  10. Se serve de consolo, comprei e li seu livro, mesmo não sendo nenhuma ingênua, fiquei absolutamente chocada com o quanto a política de certos grupos é braço do crime organizado. Parabéns pelo trabalho, siga firme.

  11. Eymard

    Lucas, esta também é mais uma página da nossa Justiça. E depois ficam indignados quando a corregedora do CNJ diz o que diz!

  12. A terceira lição é a resposta mais imediata possível às ações da parte autora, ainda mais quando ela é um membro do mesmo poder. O código processual brasileiro é pródigo de recursos. Mas não se pode retardar seu uso. Os prazos sempre são fatais.
    Falo isso porque já fui vítima de golpes iguais ao que você sofreu. Resisto até hoje na condição de réu primário, não deixando condenações transitarem em julgado, mesmo as iníquas. O maior dano que a justiça de Alagoas lhe causou foi privá-lo da primariedade. Fique ainda mais atento a partir de agora. Infelizmente, mesmo nos períodos de democracia da nossa maltratada república, o preço da liberdade é a eterna vigilância. Não a dos udenistas, mas a de profissionais competentes e sérios como você.
    V

  13. Caro Lucas
    Antes de mais nada, minha solidariedade.
    Do seu caso espantoso e revoltante, devemos todos nós tirarmos as lições devidas, já que você pagou tão caro (quanto foi, ao final?) por essa versão alagoana do processo kafkeano.
    A primeira lição é constituir um bom e confiável advogado na comarca do feito. Mesmo o melhor dos advogados terá dificuldade de acompanhar à distância. Sobretudo quando enfrenta a má vontade (ou a desbragada vomtade adversa e corporativa) do poder judiciário.
    A segunda lição é, independentemente da representação legal, a vítima (formalmente, o réu) aa ação fazer um acompanhamento paralelo, pessoal, e intervir na demanda sempre que achar necessário – em articulação com seu procurador, é claro.

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