Quem era Steve Jobs despido do marketing?

Um mês e meio atrás, o jornalista Marco Lacerda – escritor talentosíssimo (são dele Favela High-Tech, Clube dos homens bonitos e As flores do jardim da nossa casa) e arguto correspondente internacional – publicou na revista eletrônica Dom Total um delicioso texto sobre Steve Jobs, que conheceu pessoalmente. No artigo, Lacerda nos revela um Jobs diferente daquele que o marketing da Apple esculpiu: arrogante, sarcástico e paranóico. Bom dia para reler o texto de Marco Lacerda.

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Meu encontro com Steve Jobs

Por Marco Lacerda, jornalista, escritor e editor especial do Dom Total

A primeira vez que encontrei Steve Jobs foi num vôo de Miami para San Francisco, onde eu trabalhava como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo. Naquele ano,1985, eu tinha me afastado das minhas funções por um período de seis meses para fazer um retiro em Tassajara, o mosteiro zen-budista situado nas montanhas da Califórnia.

Um dos últimos passageiros a entrar no avião era Steve Jobs. Quando o avião atingiu a altura de cruzeiro, não hesitei penetrar sorrateiramente na primeira classe e o abordei com a intenção apenas de marcar uma entrevista mesmo estando de licença do jornal. Afinal de contas não é todo dia que se tem um ícone da informática ao alcance da mão.

Gentil, Jobs me ofereceu o acento ao seu lado. Na época, aos 31 anos, ele tinha acabado de levar um pé no traseiro da Apple, empresa da qual fora um dos fundadores, e estava disposto a falar, mesmo que fosse com um jornalista brasileiro anônimo, talvez pela razão sentimental de ter namorado uma carioca com qual quase se casou nos tempos de estudante universitário. Ou talvez pela estranha coincidência de fazer visitas esporádicas a Tassajara, onde cultivava uma longa amizade com o mestre zen Tenshin Reb Anderson.

Combinamos de nos encontrar em San Francisco um mês depois. No dia acertado a secretária dele me ligou marcando a entrevista. Durante uma semana ele permitiu que eu participasse de reuniões na sede da Next, empresa que acabara de abrir, e me convidou para um jantar em sua casa de Mill Valley, cidade situada do outro lado da Golden Gate Bridge, onde só vivem americanos muito ricos e, não raro, poderosos.

Depois do jantar Steve me mostrou um álbum que contava em fotos a história da Apple, com ênfase na equipe de cientista que participou da criação do computador Macintosh, sua última grande realização antes de deixar a empresa.

Nascido em San Francisco em 1955, de uma família sem muitos recursos, seus pais biológicos o deram para adoção, pois não tinham condições de oferecer-lhe uma boa fomação que no futuro lhe permitisse cursar uma universidade. Em 1976, ao lado de seu parceiro tecnológico Steve Wozniak, Jobs fundou a Apple Computers numa garagem de San Francisco, e logo lançaram os computadores Apple I e II. Com a empresa capitalizada por seus computadores “criativos” e simples, respeitada por sua ousadia, a partir de 1979 a dupla inciou a criação de um projeto que iria revolucionar tudo em matéria de hardware e software. Era o então projeto Macintosh, que ainda estava em suas cabeças e no papel.

Em 1984, a Apple lançou o Macintosh, o primeiro e único computador com recursos de desenho, tipografia, além de uma interface gráfica abundante. O lançamento do computador foi feito com um grande estardalhaço através de uma campanha publicitária exibida na TV americana nos intervalos do Super Bowl, evento esportivo que atinge picos de audiência enormes. O comercial foi emblemático por sua idéia criativa: era uma citação do livro de ficção científica de George Orwell, “1984”.

Em 1985, Jobs foi forçado a deixar a Apple pelo conselho de administração da empresa, e fundou um outro negócio de computadores, a NeXT. Em 1986, comprou a Pixar da LucasFilm, que anos mais tarde ficou famosa pela nova linguagem em 3D para desenhos animados que lançou no mercado.

Na década de 1990, a Pixar, sob liderança de Steve Jobs, produziu o primeiro filme infantil animado na sua totalidade por computador, Toy Story, embora haja controvérsias e muitos considerem que este feito pertença à produção brasileira Cassiopéia. Em 2006 a Walt Disney Company adquiriu a Pixar por 7,4 bilhões de dólares. A Disney/Pixar é atualmente o maior estúdio de filmes animados do mundo.

A rivalidade de Steve Jobs com Bill Gates, ex-presidente e dono da Microsoft, é outro fato marcante. Essa disputa pode ser conferida no filme produzido pelo canal de TV a cabo TNT, “Pirates of Silicon Valley” (Piratas do Vale do Silício, na versão em português), que aborda a biografia deles e das suas empresas, algumas vezes de forma exagerada. Podemos ver a disputa que existia entre os dois muito antes de serem os ícones que são hoje. Apesar de tudo, atualmente vieram a ser bons amigos e empresas parceiras.

A notícia, divulgada no dia 25 de agosto passado, de que Steve Jobs renunciara ao seu cargo na Apple – por motivos de saúde gravíssimos –, me fez recordar o nosso encontro em 1985. Era voz corrente no mundo da informática que Jobs nunca foi um homem chegado ao consenso, mas um ditador que só escutava a própria intuição. Tinha um raro sentido de estética, que falta à maioria dos homens de negócio. Em reuniões de trabalho podia ser cruel com seus subordinados e desdenhar de um membro do staff que apresentasse alguma idéia tola.

O Steve Jobs que eu tive a oportunidade de acompanhar durante uma semana parecia um homem arrogante, sarcástico, culto, dono de uma inteligência descomunal, ao mesmo tempo paranóico e dotado de um carisma invejável. O Steve Jobs que o mundo conheceu nos últimos 15 anos, desde o seu retorno à Apple, não mudou nada. Nunca deu trégua aos funcionários da empresa, jamais deixou de se guiar pela intuição na hora de decidir o design ousado que seus produtos deveriam ter e como deveriam funcionar. As intuições de Jobs sempre foram de tal forma magníficas – e seu carisma tão poderoso – que seus funcionários nunca hesitaram em seguí-lo. A Apple vai sentir falta sobretudo dessa intuição.

A maioria dos artigos publicados nos últimos dias, desde a renúncia de Jobs, enfocaram sobretudo suas criações recentes, mas é sempre bom lembrar que esses produtos são apenas a cereja no topo do bolo. Jobs é o inventor do computador pessoal, do refinamento alcançado pela computação moderna, o criador que salvou a Apple da falência quando desenvolveu o Macintosh. Depois vieram o iPod, o iPhone e o iPad – todos tão elegantes em seu design e funcionalidade que acabaram por se tornar mais que aparelhos. Tornaram-se objetos luxo e cobiça.

Nos últimos tempos Jobs passou a ser chamado de gênio. Artigos recentes se referem a ele como o Henry Ford dos tempos modernos, o homem que fabricou o primeiro carro que a classe média americana podia comprar. Durante o nosso encontro em San Francisco, Jobs comparou sua recém-nascida indústria de computadores à indústria de carros iniciada por Henry Ford, que mudou a história do mundo.

Ao renunciar prematuramente ao posto de líder da Apple, aos 56 anos, Jobs experimentou, mais e melhor que qualquer ser humano vivo, o sentimento de glória que certas conquistas podem trazer. Por isso já tem lugar marcado na história como um homem que ousou sonhar e apresentar sua visão ao mundo. Ao anunciar a renúncia de Jobs, o jornal alemão Volkskrant disse em grande manchete: “Os fãs e adeptos da Apple perderam o seu messias”.

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Leia aqui outros textos de Marco Lacerda.


1 comentário

Arquivado em Histórias de repórter

Uma resposta para “Quem era Steve Jobs despido do marketing?

  1. Gabriel Silveira

    Ótimo texto sobre o Jobs.

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